Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A literatura salva - Machado de Assis e Doris Lessing


E lá estava eu, em pé para uma explicação rápida, de saída mesmo, a falar em Machado de Assis. Esse homem sentado sobre a cabeça do meu texto de hoje.

De algum modo o percurso dele virou, para mim, uma ideia fixa.

Escrevi um artigo científico que ficou sem a devida apreciação dos membros do conselho editorial de uma revista.

Submeti esse texto à leitura de uns amigos mais próximos. Muito bem, surgiu a oportunidade de, com dois ou três, resumir tal percurso como eu o conheço. Digitei, falei em voz alta e só então cheguei a uma conclusão.

O percurso de Machado de Assis faz todo o sentido quando o leio hoje, porque ele se entendeu, a despeito das vozes que ou anunciavam entendê-lo (e podia ser uma mentira) ou o acusavam de ser um tipo que gagueja nas horas mais importantes.

Retorno à percepção da ironia. Está em outro post...

Se ele teve que se fazer - e isso está pressuposto em todo autodidata, por exemplo -, livrou-se de muitos ecos pelo caminho. Pôs de lado as máscaras com que se poderia esconder e disse muito, disse muito em cada história de ficção. Dialogou com os mortos, fez monólogo sobre os tipos menos generosos da época em que vivia, aprimorou um discurso pessoal de muita coragem. Atingiu um ponto a que eu gostaria imensamente de chegar.

Eu. Os outros. O outro em mim. Tem horas em que mais vale a ironia! Onde a nossa cabeça está quando essa constatação falha? Com que interlocutor estamos a conversar, para que só cheguemos a um pedaço do caminho até a ironia?

O senso de humor refinado, o transformar em pó as incoerências daqui e dali é o que se pode fazer, tantas vezes. É o que está à mão... Que outra transformação alguém pode desejar?

Quantas vidas tenho eu para andar a confiar mais nos julgamentos do que nas soluções?

Machado aprendeu com os gregos, com os ingleses, com os franceses, com os conterrâneos brasileiros.

Se a literatura ja tirou meus pés do chão, os dois ao mesmo tempo, dando uma visão distorcida de como se constroi um universo particular saudável, vamos me tirar disso, depressa. Com mais ou outro tipo de literatura. E sem achar que ela estraga, mesmo a mais fraquinha literatura.

Não é só mais Fitzgerald, mais García Marquez, mais Kafka, mais J.D. Salinger, mais Machado de Assis, mais Rushdie... Listei num terceiro post os textos que me ajudam a pôr os pingos nos is, como se costuma dizer, mas não esgoto o assunto nem o repertório.

Quero a aceitação febril que eu li em Doris Lessing, especialmente em algumas das suas mais femininas personagens, daquelas que consentem em abandonar um porto seguro (a ilusão do emprego perfeito ou o controle das paixões) para conhecer tarefas mais duras. Queria ser eu a estender-lhe a mão com um microfone depois da notícia do Nobel, sedenta de respostas, agitada por dentro com a digestão dos fragmentos de livro repassados, como uma criança repassa em casa a matéria antes da prova na escola.





Nunca me esqueci da impressão forte que a leitura de O diário de uma boa vizinha deixou em mim. Doris Lessing escrevia sob a proteção de um pseudônimo. E eu, com 12 anos, descobria que em outros países, numa realidade nada parecida com a brasileira, os idosos eram como fardo e como responsabilidade social do Estado, ao mesmo tempo. A "boa vizinha" (alcunha que popularmente davam às assistentes sociais naquele contexto do livro) - que não o era de profissão - pagou as contas na mercearia, carregou as compras, foi até à cozinha mal cheirosa depositá-las e ainda fez o chá à mulher idosa que tinha acabado de conhecer por obra do destino. Nunca antes se tinha incomodado, nunca antes se tinha permitido descer ao mundo dos sobreviventes. E depois daquele dia, no entanto... É pouco? É trivial nas sociedades ditas mais humanas, mais solidárias? Talvez, sim. E no entanto é como cruzar uma ponte. E no entanto... fica o desejo de outra mudança. Que a vida vai proporcionar, mas que a arte oferece de bandeja, restando ao leitor o trabalho de dar uns passos. O autor os deu, com criatividade, talento e labor.

Mais um post, enfim - como mais um brinde, se quisermos enxergar as coisas nessa metáfora -, para celebrar essa mágica da literatura, com dois nomes de peso que fizeram bem a mim como podem fazer a tantos outros leitores.

2 comentários:

  1. Dois nomes de peso mesmo... Os dois também me são muito caros! De fato, nos enriquecemos muito com a literatura, ganhamos lastro.

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  2. E eles são tão diferentes... Doris Lessing escrevia sobre a família; escreveu sobre a destruição da família padrão, por exemplo, em O quinto filho (o livro que eu li com mais sofreguidão em toda a minha vida). Machado criou famílias presas por laços de conveniência. E quando mostrou a família por se formar, não foi hipócrita, pôs no papel a personagem que, diante da deformidade física da parceira em potencial, permitia-se hesitar e até desdenhar. O papel aceita tudo, como se diz, e isso é vantajoso se pensarmos em nossa dificuldade para praticar sem hipocrisia e na coragem dos escritores que criam com aquilo que rejeitamos.

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