Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


sábado, 29 de dezembro de 2012

Wall.e




Começou com uma música, um robô e uma barata muito estimada que, afinal, podia muito bem fazer parte daquele cenário de fim de mundo pardacento.

Wall.e, o robô, tinha a barriga grande como um forno, correntes nos dois lados do corpo, para se locomover à semelhança de um tanque de guerra, olhos que me impressionaram pelo formato e pelo tamanho, e duas mãozinhas como que à espera de outras mãos.

Estava sempre a trabalhar. Extrapolava a função para a qual fora criado, a de limpar o mundo dos detritos acumulados por gente cada vez mais desprovida de senso de responsabilidade: enquanto compactava o lixo, ele selecionava o que reluzisse e, então, deslocava esse lixo especial para um arquivo só dele.

Sentido de missão, lá isso ele tinha. E trabalhava sem desligar o botão da curiosidade. Era capaz de interromper a cansativa e inesgotável tarefa de limpar o mundo, para ouvir e ver musicais, como “Hello, Dolly!”, pois tudo está conectado, tudo tem um sentido caro. Wall.e estava atento às luzes, também, e por isso recebeu Eva tão logo uma nave a deixou à superfície.

Fôssemos nós, alguns de nós pelo menos, chatos que desejam tudo menos atender bem, tudo menos olhar de frente, tudo menos dar-se ao trabalho de compreender, e os pequenos tesouros estariam para sempre enterrados e os outros, esses estariam sós, irremediavelmente sós à procura de vida.

Bom, acontece que Eva não era como Wall.e. Fora concebida com um desenho mais elegante, talvez, os olhos emitiam uma luz azul (que apesar de fria, sabe-se lá por que, costuma ser entendida como uma credencial para o universo que vale a pena, o dos ricos e famosos), cheirava a higiene a brancura do material com que fora revestida. E não havia com ela hora para a diversão. Eva chegara para rastrear qualquer vestígio de vida, mas saberia o que vida quer dizer? Saberia dar com os presentes escondidos?

Eva reconheceu uma plantinha sobrevivente, guardada por causa da boa vontade de Wall.e, mas não reconheceu nele o desejo de mais vida. Ou só o reconheceu bem mais à frente. No princípio, nem aos musicais a sua doçura estava aberta. Fora formatada para bem menos do que esses encontros felizes…

A respeito de formatações, vale lembrar que, no início do século XIX, passou a existir, por obra da escritora inglesa Mary Shelley, um monstro que pedia uma companheira em cujas características ele se reconhecesse, uma igual, enfim. A incompreensão causava dor à criatura do Dr. Frankenstein. Há poucos anos, por outro lado, a Pixar, da Walt Disney Company, criou esse robô Wall.e igualmente esperançoso de um par romântico, mas que não tinha interlocutores aos quais se lamentar, a fim de conquistar o direito a um par com perfil pré-definido e mais apropriado do que outros perfis. Eva e ele não se pareciam, mas estava tudo bem. Wall.e queria passear, dar as mãos, cantar e dançar. No mundo dele, bolas, a música de fundo podia ser “What a wonderful world”, na voz de Louis Armstrong! A solidão e a consciência de que antes do fim do mundo existiam casais amorosos eram bons augúrios.

O filme tem muito mais, claro, mas hoje, às vésperas de mudar de ano, pensei nas nossas casas mal pensadas para o rigor do frio, do calor, das chuvas etc. Pensei nas tantas coisas concretas e indispensáveis, mal feitas e mal remediadas, que parecem interessar a pouca gente, a pouca gente desperta e disposta a arregaçar as mangas. Hoje sou eu a sentir na pele o quanto o descaso aliena e torna o espaço habitável pior do que pode ser. Não por acaso sinto-o na pele e não posso deixar de lamentar; estaremos cansados demais para construir com mais responsabilidade? Estaremos desatentos demais? Estaremos atrasados demais? E será que daqui a algum tempo ficaremos roliços e lentos como os humanos que tiveram de abdicar de um vasto espaço e depositar toda a confiança em Wall.e e Eva? Quem fará nossos robôs salvadores com um bocadinho do seu próprio coração?!

7 comentários:

  1. Comodidade: Nosso amor, nossa sina, nossa ruína.
    Como bem disse, a inquietação é de poucos.
    Poucos, talvez notáveis, mas poucos.
    Talvez estes poucos tenham o poder de iluminar outros poucos mas desconfio que a sedução da comodidade impeça a grande maioria de nós de abandonar o status quo, ainda que ele nos encaminhe ao caos.

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  2. A comodidade conserva, acho eu.
    Mas é conservação má, do tipo que cheira a mofo.
    O outro extremo, o excesso de inquietação, também nos atrapalha, porque destrói.
    Li há umas horas o prefácio de uma edição de O GRANDE GATSBY, um dos livros de que mais gosto, e fiquei tão incomodada com as explicações sobre a ruína do autor, Scott Fitzgerald.
    Tenho tanto medo da ruína quanto do conservação que impede a aproximação das novidades.
    Remédio?
    O meio-termo.
    Será que o ser humano do meio-termo é feliz, César?

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    1. Tenho uma simpatia pelo budismo e o caminho do meio é justamente a materialização desta ideia.
      Tendo a pensar que a erudição para o homem tal o casulo para a borboleta.
      Ignorantes somos como lagartas. Consumimos. Apenas consumimos. Sem pesar implicações, sem medir consequências.
      Ao caminhar pela erudição nos tornamos crisálidas. Figuras em trânsito. De certa forma isolados, alheios, desencaixados do que há ao nosso redor.
      Penso que felicidade pode ser muita coisa, talvez o mais difícil seja justamente entender o que nos torna felizes. Verdadeiramente felizes.
      Talvez neste ponto nos tornemos borboletas.
      Talvez eclodamos (neologismo?) sem o devido preparo.
      Talvez fiquemos eternamente buscando a matéria dessa nossa felicidade, talvez nos passe desapercebida a resposta.
      É preciso muita sensibilidade para aceitar que aquilo que queremos pode não ser o que nos fará feliz, que podemos, muitas vezes, estar enganados ao nosso próprio respeito.
      Gosto da sua pergunta. Como toda boa pergunta, responde-la apenas me traz novas questões e alguns palpites inconclusivos.

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  3. Boas imagens, essas 3 de uma cadeia de transformação, potencial transformação.

    Estar enganado a respeito do que somos, afinal, deve acontecer montes de vezes! E se pensamos e vemos como lagarta, ao passo que já somos borboleta, o que farão de nós?!

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    1. Creio que a pergunta mais apropriada é "que faremos de nós". Tudo que sei é que de nada valem asas sem a consciência de que pode voar.
      Talvez felicidade seja mais uma postura do que uma realização. Isso explicaria a subjetividade da matéria.

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  4. Um filme realmente doce, tanto quanto este texto com um belíssimo desenlace: "Quem fará nossos robôs salvadores com um bocadinho do seu próprio coração?!".

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  5. Ainda bem que gostou. O filme inspira, não inspira!? Dá vontade de fazer a vontade ao Wall.e e dar as mãos e dançar!

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