Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Vítima, agressores e vingança: receita moderna de intolerância?


“É a nossa vez”, parece dizer quem se anuncia como “do bem”, ao levantar a voz contra quem é “do mal”.

É cada vez mais frequente o discurso do vingador, pontuado de pequenas fórmulas.

Os tradicionais jornais, no seu modo virtual, e as redes sociais estão cheios de berros, de brados, de insultos, de opiniões sem flexibilidade e de um humor inconsequente, caso dos que não se incluem no grupo dos vingadores, mas fazem troça de tudo à volta.

Sinto-me incomodada com o recurso às fórmulas, aos rótulos e também com a recusa em compreender. Cada um tem seu ritmo, mas o trânsito fica caótico nessa conversa entre fortes, fracos, displicentes… as palavras se sobrepõem, umas abafam as outras, e pouca gente tem tempo e profundidade para mergulhar nessa trama, sem culpar ou imitar quem grita mais alto.

Sinto o mesmo incômodo quando ouço que determinado debate público não tem importância, porque não é uma prioridade tratar daquele assunto, naquela hora. Tá certo que as pautas são manipuladas, mas com um pouco de paciência, de ironia e de habilidade, devíamos contribuir para desmanchar conveniências, para retirar o poder de quem nos obriga a olhar para um tema, evitando outros.

Os assuntos vão surgindo, uns são incontornáveis, outros, perfumaria; poderia ser suficiente para nós, como grupo muito muito amplo que somos, seguir em frente, se a perfumaria for assim tão irritante (e tendo ou não o que propor acerca dos assuntos incontornáveis) ou assistir ao debate dito pertinente e oportuno, para aprender mais.

Mas, num toma-lá-dá-cá a propósito de uma notícia mal redigida num portal da Internet, por exemplo, facilmente se nota como os participantes não têm norte, como comentam a notícia em si ou a falta de qualidade do texto, sem observar o mínimo de coerência no que verbalizam, sem respeitar pelo menos o princípio da inteligibilidade.
 



No que diz respeito ao Brasil, é batata! Entendo que as pessoas estejam dececionadas com os rumos da política, com o descontrole da violência, mas não haverá uma pessoa sequer, um grupo para funcionar com contraponto à prática de transformar qualquer debate em queixa contra o governo federal e contra “os direitos humanos”? Ninguém para aconselhar que uns e outros usem menos palavrões e mais metáforas, e mais provérbios, e mais imagens?

De longe, o que eu suspeito é que as pessoas que dão a cara estão enfurecidas, sem ideias muito responsáveis, sem coragem de encarar o mais imediato, que é o dia a dia no seu mais inevitável conflito. As escolas são barris de pólvora, vamos trabalhar e vamos a elas entregar nossos filhos para a obrigação de estudar, com a melhor participação possível?

As ruas numa parte do Brasil têm uma frota de carros absurdamente grande, por isso vamos com calma ao volante, tenhamos respeito dentro dos meios de transporte público, com o ciclista e como ciclista, com o pedestre e como pedestre.  

As greves nas universidades já eram uma opção quando eu ingressei no curso de Letras, em 1994. Desgastavam alunos, professores, não resultavam em muitas contratações (pelo menos não foi o que eu vi, como aluna), quebravam o semestre e o ano letivo e davam uma insegurança enorme no principal, que é o aprendizado (do conteúdo, da cidadania). Hoje, em algumas faculdades, foram colocados nos corredores até sofás e eletrodomésticos dos alunos, como forma de protesto. Quem resguarda o direito de outros membros da comunidade, que podem precisar transitar dentro dessas faculdades livremente? Quer dizer que a mais inteligente resposta aos tiranos é tiranizar os outros?

Já escrevi muito superficialmente sobre uma ideia que eu conheci por meio de um livro de Alberto Manguel, escritor argentino, e agora volto a ela. O livro é No bosque do espelho.

Ele tem um raciocínio bem fundamentado em autores conhecidos do público da literatura de ficção (como Borges, Kipling e Conrad). Na leitura que eu faço do capítulo VII, “Crime e Castigo”, ele mostra como prevalece entre nós a ideia de um direito à vingança.

Segundo ele, essa ideia é o resultado de uma intolerância que, por sua vez, é retrato da estupidez de alguns regimes. Quem tem mais poder e não sabe usá-lo, oprime; quem é oprimido às vezes responde com a mesma estupidez das autoridades desse regime e, preso a ela, não enxerga mais e fica a falar e falar para os estereótipos, isto é, entra numa conversa enlouquecida com os únicos representantes que vê, sem suspeitar que existem, no próprio mundo dele, outros grupos, outras vozes, outras razões.

Manguel salienta que entre a literatura que é mero rabisco (por mais refinada que seja) e a possibilidade que só ela dá de abrir horizontes a partir de rabiscos, existe uma saída digna até para quem foi tomado pela ideia de vingança.

Está no final do capítulo, cujo subtítulo é “Idade da Vingança”, uma curta história real sobre um homem equilibrado que, depois de perder filho e nora, escolheu a vingança. Nas últimas linhas, o pote de ouro no final do arco-íris: quem tem força maior que a da vingança, quem tem um valor mais alto, precisa fazer bom uso dos seus argumentos e, com eles, apontar um caminho de mais dignidade. No caso verídico relatado por Manguel, estão um poeta e Mães da Plaza de Mayo, ambos oprimidos com a mais dura das crueldades. Um deles acaba persuadido pelo outro a crer na liberdade de nos distinguirmos dos opressores, ao abandonarmos a ideia de vingança. O resto é história.

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