Existem leituras, visões de mundo
segundo as quais não vale a pena apreciar muito um acontecimento ou uma
tendência, porque algo maior (e pior) está por trás da qualidade que nos fez
parar, refletir e agradecer pela visão. É mais ou menos como querer assegurar
um olhar cínico para o mundo, porque de perto tudo é bonito, ao passo que,
quando nos afastamos, sobra o produto, a contingência, o que não foi escolhido
para ser bonito, mas que se calhar até ficou interessante…
Voltando à comida e à exploração dela
na televisão, tema do primeiro post
de novembro, gostaria de não resvalar para esse negativismo; minha ideia é escrever
sobre o que me parece bonito e gostoso no programa Britain’s Best Bakery, que visita padarias e as desafia a mostrarem
suas especialidades e sua capacidade de cozinhar os clássicos locais com um
toque pessoal. O programa tem acertos e erros, mas se eu compartilho o que
considero os acertos, elevo a fasquia, não elevo?
É uma dupla que apresenta o
programa, Mich Turner e Peter Sidwell. São novos, a abertura de Britain’s Best Bakery fala neles como premiados
especialistas: ela faz bolos e ele faz pães artesanais. Não tratam mal os
concorrentes, de forma alguma, nem são exatamente divertidos. Se eu fosse
buscar aquela ideia do filme “O Tempero da Vida” (2003), de que pessoas que
entendem de temperos entendem também de conversa, pois temperam suas conversas,
teria que desconfiar deles… Os gestos estão lá, enquanto eles falam, mas serão
gestos contidos demais? Existe isso, o ser contido no mau sentido? Eu, que na infância já fui conhecida por "Paçoquinha", como poderia falar mal de qualquer forma de delicadeza?! Enfim, eles
buscam e comentam entre eles o facto de uma padaria ter um ambiente acolhedor
ou o facto de representar a comunidade, mas esses comentários não chegam ao concorrente,
pelo menos não no material editado, para que nós vejamos como as críticas e os
elogios são recebidos. Ficam para nós as bonitas paisagens dos locais onde
essas padarias se instalaram e a sugestão de que
tentativas de embelezar o ambiente e os pratos são fúteis, se não tiverem alma, se não tiverem
substância.
Eles vão falando nas características
que uma comida bem feita deve ter (a crosta do pão deve ser estaladiça, o miolo
deve ser elástico, os sabores têm de estar equilibrados), mostram ingredientes
e técnicas, destacam tudo o que pertence à história da culinária do Reino Unido,
sem esquecer como é importante inovar. Terão,
por isso, um quê diplomático, outro ingrediente de que o filme “O Tempero da
Vida” fala, quando escolhe qualidades de quem cozinha? A certa altura de um
episódio, Peter Sidwell confessou, antes de comer um pão de beterraba, que o
ingrediente principal daquele pão não o atraía, porque sabia a terra. Ele ia
provar, no entanto, pois essa é uma parte da sua profissão… Comeu e apreciou. O pão, além de
tudo, era lindo!
Em um outro episódio que eu não
vi por completo, apareceu uma concorrente brasileira, que ao chocolate das suas
florentinas (que confecionava pela primeira vez, o que acontece a vários
concorrentes estrangeiros no Reino Unido abordados pelos apresentadores com um
pedido bem específico) acrescentou um pouco de pimenta malagueta. Os
apresentadores gostaram, e mesmo assim ela foi eliminada do desafio, pois houve
uma concorrente melhor sucedida do que ela em outra prova.
Parece que o programa é um
sucesso. Parece que cozinhar é um sucesso. Parece que associar a terra e as
tradições culinárias é um sucesso. Ainda bem. Há quem se exiba ao cozinhar,
pura e simplesmente, já tenho cruzado com uns tipos assim. Há quem aprenda ou
quem se recorde de que as emoções, tão desperdiçadas hoje, vêm também de um certo
tempero, que pode ser entendido como metáfora ou como realidade concreta. Em família e fora dela, às vezes é justamente o tempero errado que nos
faz abrir espaço para a emoção certa e, quem sabe com muita sorte, para a
abertura mais bonita, a da alma. O filme do qual eu tirei isso também, “O
Tempero da Vida”, foi-me indicado por um amigo do coração, bom ouvinte e ponderado.
Como muito do que eu vejo e ouço nos últimos tempos, filme e amigo me fizeram
recuar até mim, abraçando nesse gesto a minha origem e vendo, quem sabe eu
esteja vendo de verdade, imagens promissoras, imagens que são como a
materialização, a prova de que existe mágica no que somos e no que fazemos. E
então é preciso insistir em fazer, em preparar, pôr à mesa, convidar a que
provem o que fazemos de melhor. Não vejo ao microscópio uma sobremesa, por
exemplo, mas os sabores doces foram postos nela e me ajudam a ganhar fôlego
para encarar a vida de frente, como meus avós encararam, como meus pais o
fizeram, como afinal eu tenho que fazer, numa terra tão linda quanto as terras
de onde eu venho. Se, como na última cena da co-produção Grécia/Turquia, cada
tempero em pó for meticulosamente disposto numa superfície, desenhando então
uma imagem, e o conjunto depois for soprado para o ar, a nuvem que se verá me
lembrará que está tudo aqui, sempre, como um
desenho da nossa biografia, inserido num desenho maior.
Li um post sobre o filme que chama a essa última cena de brega. É uma opinião. Não acho que tudo o que vemos e provamos têm de ser uma epifania, tem de ser excepcional. Para mim, tem horas em que basta a sugestão deixada pelo autor da obra. Orquestrar muito bem ideia e execução é excelente. Nem sempre é o que chega até nós. E nunca é perfeito, nem quando é excelente. Eu não fico com indigestão nem ao ver Britain's Beste Bakery nem ao assistir ao filme "O Tempero da Vida". Fico com água na boca.
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