O
português cisma mais do que o brasileiro, quando o assunto é separar em
categorias.
Para
ele, “estrada” é a mesma coisa que “rua” para o brasileiro, mas “auto-estrada”
é diferente, é a “estrada” ou a “rodovia” do brasileiro. As palavras são
semelhantes, uma está contida na outra; já o que elas indicam, nem tanto.
A
“via rápida” é outra história, nem estrada nem auto-estrada, mas mais ou menos
uma avenida movimentada, que deve desembocar nalguma auto-estrada.
Também
tem “avenida” e tem “travessa”, esta última aparece gravada na placa pregada à
parede de uma casa de esquina ou na de um banco etc; se fosse no Brasil, “travessa”
só seria ouvida durante a explicação de um trajeto, por exemplo, e sempre para
aludir ao desenho que uma rua forma com a outra.
Um
“caminho” pode ser poético, em Portugal, como os “Caminhos do Romântico”, percursos
temáticos pela cidade do Porto, aos quais os turistas supostamente devem ser
mais sensíveis.
“Lugar”
eu nem sei empregar… é um ponto no mapa, pronto! Tem muito “Lugar de baixo”, em
Portugal, tem ainda “Lugar da Chentuada”, que é uma morada ou um endereço.
“Lugar” é um pouco mais impreciso do que “terra”, palavra que aqui também se
utiliza para indicar uma origem, uma procedência nada cosmopolita, aquele
pequeno espaço de onde fulano veio e sobre o qual falam com certo embaraço.
“Freguesia”
é o bairro.
“Sítio”
é termo português que eu penso já ser mais familiar para o brasileiro, por
causa da nomenclatura relativa à Internet e até por causa do uso genérico que
aqui tem; seria, grosso modo, o nosso “lugar” - em nada parecido com o tipo de
propriedade agrícola que “sítio” designa no Brasil.
E
tudo isso, é claro, eu vou contando na minha verve paulistana que, para muita
gente, quer dizer ela própria quase nada, já que em São Paulo cortamos as frases
antes de elas estarem desenvolvidas e cortamos as palavras, na pressa de
pronunciá-las. Quem quer que esteja em trânsito, há-de chegar ao seu destino, naquele
mega-aglomerado que é ao mesmo tempo uma cidade caótica e bem sinalizada.
Ninguém liga muito ao como fala, em
São Paulo, mas todo mundo se comunica para não perder a viagem, literalmente.
Enfim,
aqui em Portugal dá-se o inverso, o território é falado em linguagem
específica, bem aplicada, que no fundo pode ser o mínimo que se exige em termos
de organização. No entanto há uma excepção engraçada, pois em qualquer
auto-estrada, os portugueses apelam para uma sinalização tão característica
quanto “Outras direcções”. Assim não dá! O estrangeiro em viagem por este
pequeno país só se desenrasca se tiver ou imaginação ou faro! Quantas direcções
caberão no “Outras direcções”, se o país é desconhecido de quem se orienta pelas
placas?
E
bem neste paradeiro, pensado com uma lógica no mais das vezes clara, para que
as dúvidas espaciais não se instalem, eu vim parar sem a paranóia dos mapas,
sem o medo de comer poeira, mas quase completamente ausente de direcção interna.
Vim
disposta a amar cada centímetro dessa minha outra casa, sem saber como uma
pessoa desenvolve a capacidade de se inventar e de amar a si mesma, sobretudo, durante
a travessia.
As
referências que eu trazia, são úteis ainda hoje?
Penso
num provérbio árabe que me surpreendeu por muito tempo: “Louco é o viajante que
quer construir uma casa no caminho”.
Penso
em Carlos Drummond de Andrade, com o arquiconhecido poema “No meio do caminho
tinha uma pedra”.
Penso
nos Novos Baianos, grupo musical extinto e entretanto fresco (na memória), com
seu refrão irreverente, “Caia na estrada e perigas ver”. Em cada parte da
canção eles o completavam com uma realidade bem mais rasa do que os sonhos, só
para nos provocar. A título de ilustração, lembro o que eles cantavam: “Caia na
estrada e perigas ver: a mulher que andou na linha, o trem matou”.
É
justamente o avesso da previsibilidade desejada pelo português. Segundo os
Novos Baianos, a gente deve rir da mulher que deseja andar na linha, porque o
fim dela é duro e a linha do trem, essa continua, essa é de ferro.
Eu
rio do pragmatismo às avessas dos artistas baianos, que só nos querem pôr em
movimento, sem ideias pré-concebidas.
Finalmente,
penso no Lô Borges, talvez pouco conhecido em Portugal:
“Com
sol e chuva você sonhava/
Que ia ser melhor depois/
Você queria ser o grande herói
das estradas/
Tudo que você queria ser/
Sei um segredo: você tem medo/
Só pensa agora em voltar/
Não fala mais na bota e do
anel de Zapata/
Tudo que você devia ser/ sem
medo”
Entre objectividade e acidentes de percurso, que rota seguir?
Existe mesmo uma encruzilhada, um caminho à
esquerda e outro à direita na vida?
Será que o provérbio árabe nos ensina que parar
e construir a casa é um mero acidente?
Uma pessoa parte para o
desconhecido, encanta-se com as novas paisagens, interrompe a caminhada e…
pronto, está a abrir mão do essencial, do próprio caminhar, da própria busca?
Uma pessoa parte, topa numa
pedra, vem um pasmo interior e ela fica a lembrar desse pasmo infinitamente, por
mais vulgares que as pedras no caminho sejam?
Uma pessoa observa os tipos na
estrada e ri? Ou não os observa, pois assim concentra forças para continuar a
escolher seus percursos com liberdade?
Uma pessoa se aventura, faz
projectos, desbrava e as pressões falam tão alto que ela quase assume que não
pode ser: sonhar e conquistar estão a dar-lhe cabo da vida!
Que sementes dão cabo da nossa
cabeça?
Qual a lógica que dá melhor
forma à vida e qual a deforma?
Se penso na literatura, fecho
com Guimarães Rosa, que é sempre bom remate, ao colocar pensamento dentro de
pensamento, história dentro de história:
“Chegando
na encruzilhada, eu tive de resolver. Para a esquerda fui, contigo. Coração
soube escolher” (“São Marcos”)