Para não induzir ao erro de supor
que estive horas no espaço físico de um museu, à frente do quadro acima, sublinho
que estive a olhar para ele apenas depois de aceder ao site do Instituto Itaú Cultural, e sempre através do ecrã/tela do
computador. Fiz a consulta ao site no
dia 28 de janeiro deste ano.
Porque só me vali do computador e
ele tem seus limites – isso para não falar nos meus limites -, saliento que as cores, no quadro que o meu computador maltratado me dá, podem não
corresponder ao quadro original, pois a internet permite e
ao mesmo tempo não permite conhecer.
A propósito de acertos e erros, esclareço que as medidas do quadro são 85 x 79
cm. É quase a forma de um quadrado. A informação está disponível na internet,
restando a quem tem boa noção de espaço dimensionar a obra.
Escrevo sobre este quadro porque nunca precisei refletir demais sobre as
perspectivas de uma amizade, porque me interessa o que esse
tema suscita em mim, hoje, e porque não me agrada de todo o resultado que vejo nele; mas ficava contente em ler comentários sobre leituras
diferentes, principalmente por causa da lacuna entre o palpável e o virtual do
quadro em questão.
O título dele é “Doppelbidnis
Margarete und Zoe [Duas amigas]” e o pintor, Lasar Segall. Está assinado no
canto superior esquerdo. A data compreende o intervalo entre os anos de 1917 e
1918.
Quadro com quase cem anos de
existência, está numa coleção particular. Desde quando? Não sei.
Também não sei de quem é a
coleção. A quem estará confiado (e confinado) o quadro? Fico a imaginá-lo numa
sala muito solene, pregado numa parede.
Minhas dúvidas, no entanto, repousam
na zona das intenções sob controle, não preciso que sejam respondidas.
Vamos, então, às ideias que
brotaram da apreciação do quadro.
O título evoca a amizade. Hoje, como já falei de raspão, esse tema tem um quê de árido, mais do que de romântico ou de fluido.
E por que, então? Que fazem duas
amigas que possam me causar estranheza?
Eu poderia ir por vários caminhos: a amizade entre adolescentes, a amizade entre os homens e as mulheres,
a amizade que dura toda a vida adulta etc, mas é melhor limitar o raciocínio ao
que o quadro oferece: duas amigas jovens.
Não sabemos desde quando são
amigas. A amizade terá passado fases boas e fases más? Provavelmente.
Na pose em que as vemos, por obra
de Lasar Segall, olham para direções diferentes. Seus olhares não se cruzam.
O corpo de uma delas tem uma
torção esquisita. Para estar sentada ao lado da amiga é que ela assim está? Ou
ela não aprecia contato físico, e por isso chega o corpo um pouco para a
esquerda?
Pode ser que uma delas estivesse
muito mais (as)sentada do que a outra… a de cabelos e casaco (ou será, antes,
uma camisa?) de cor quente parece prestes a levantar, enquanto a de olhar pacífico
não procura fazer movimento.
Esses olhares e essas poses me levam a pensar na sintonia.
Pode ser que entre as duas moças
tenha faltado essa tal de sintonia.
Se sintonia tem que ver com
identidade, a falta de sintonia acontece muitas vezes entre nós e as pessoas de
que gostamos, as pessoas de quem podemos dizer que fazem parte do nosso círculo.
Lasar Segall pintou esse quadro
há quase cem anos. Hoje, somos muito descuidados nas aproximações e na
manutenção dos contatos.
Octavio Paz escreveu sobre perda
de sentido, estudada por ele no que toca o universo da poesia. Segundo ele, desde
há algumas décadas enfrentamos uma fase de percepções tão dissociadas umas das
outras, que o sentido que determinado poeta tinha posto num poema, por exemplo,
perde o estatuto de verdade para quem o lê. Não damos conta de saber que as
imagens têm o poder de representar, não encontramos correspondência entre as
nossas imagens de eleição e as dos outros. De pessoa a pessoa, enfim, um elo
está partido, pois não existe diálogo.
Sem diálogo, sem troca de
representações, sem sintonia, matamos tempo a conviver sem conviver, como duas
amigas sentadas bem próximas, mas fechadas em mundos particulares. Podemos até gostar de nomear a outra ao relembrarmos os amigos, mas entre a intenção boa e a realização, que distância vai!
O que Lasar Segall pintou não tem
confluência de olhares. As personagens não esboçam gesto típico de conversa;
ficássemos então com a hipótese de trocarem mensagens pelo olhar, estávamos
agora frustrados na tentativa de entendê-las.
Pode ser exagero da minha parte,
mas o que os corpos conversam não denota esforço. No bom sentido do esforço, não.
Não ficamos com pistas de que se entendem bem dentro de um regime de poucas
palavras, nem temos como afirmar que só estão alheias uma da outra porque
acabaram de discutir. Elas também não conversam conosco.
Uma repousa, a outra ameaça sair.
Mas não sabemos o que faz delas amigas.
Estarão de mãos dadas? Às vezes
olho e me parece que sim.
Seria uma forma de troca, troca
de calor, toque, um sinal de aceitação, de harmonia.
Mas e as cores? E a luz?
Passou-me pela cabeça que uma
tinha sido metida numa tina com tinta amarela e a outra tinha apanhado um
mormaço terrível. Num dia quente e (h)úmido, a mais inquieta saiu à rua sem
chapéu; a outra, adoentada ou insaciável bebedora de chá, viu-se tingida de
amarelo depois de muito chazinho de camomila e assim ficou, imóvel!
Não sei qual a associação que me
assalta, mas atribuo a falta de sintonia também à diferença de cores, como se nem
nisso elas pudessem concordar.
Têm saias muito rodadas, ambas
prenderam o cabelo na altura da nuca, consentiram em posar para o artista, dizem-se
amigas (ou o pintor assim o diz a nós), mas não querem dar nas vistas…
Antecipam um desencontro muito
atual, muito corriqueiro. Um silêncio que outras telas não têm, mesmo que sejam
mais apelativas aos olhos que aos ouvidos. Parecem dizer:
- Não temos do que rir. Nada no campo de visão captura nosso olhar. Não nos deixamos influenciar uma pela
outra. A amizade? Ah, ela resiste a tudo.
Toda esta minha divagação, no entanto, passou longe do que está de verdade no interior, sem ter que dar mostras de que lá está.
Vejo fotografias minhas com uma e outra amiga e sei que não fazíamos esforço para caracterizar a amizade. Ainda mais eu, que custo a descontrair.
Mas na pintura, na premeditação a que o pintor tem direito, na tentativa de representação, não seria legítimo ver a amizade caracterizada? Seja na altivez dos jovens, seja na precipitação dos jovens, essa amizade podia transparecer.
Lasar Segall tinha pouco menos de 30 anos quando fez o quadro. Era já homem viajado e as enciclopédias de arte assinalam justamente o ano de 1917, ano em que o quadro “Doppelbidnis Margarete und Zoe [Duas amigas]” começou a ser criado, como um ano de muito exercício expressionista da parte dele.
Se falava mais alto o desejo de subjetividade, em vez de uma opção pela documentação, então realmente minha ideia de amizade está incompleta.
A concepção de Lasar Segall e a minha concepção pouca intersecção fazem. Fica de todo modo a ressalva: nunca tentei expressar essa minha concepção, aliás mutante, na linguagem da pintura.
A minha visão de juventude, a minha visão do ato de retratar o etéreo, a minha necessidade de brincadeira, e ao mesmo tempo de provas quase físicas, não acha conforto no quadro dele.
Saio indecisa da decifração, da posição de quem olha.
Minha passagem pela escola, na quente cidade de Piracicaba, deu-me amigas muito diferentes de mim, graças a Deus, várias delas espalhafatosas.
Na faculdade, há uma amiga impagável, nesse gênero pastelão. Demos aula em dupla, durante um tempo, era a primeira experiência formal de uma e de outra como professora, e eu respondi um sonoro e convicto "sim", a uma pergunta feita em voz alta por um aluno, ao passo em que ela respondeu outro sonoro e convicto "não" para a mesma pergunta.
Como adulta, que quero eu das amizades?
Notícia regular de uma amizade amorosa, de fé, que atravessa continentes. Se hoje acredito mais, é muito por causa de uma amizade, de uma intimidade que eu consinto, de um reforço daquilo que considero virtudes minhas - e dela!
Se fosse eu a pintar-nos, a mim e a ela?
Nem pensar, a artista não sou eu...
Toda esta minha divagação, no entanto, passou longe do que está de verdade no interior, sem ter que dar mostras de que lá está.
Vejo fotografias minhas com uma e outra amiga e sei que não fazíamos esforço para caracterizar a amizade. Ainda mais eu, que custo a descontrair.
Mas na pintura, na premeditação a que o pintor tem direito, na tentativa de representação, não seria legítimo ver a amizade caracterizada? Seja na altivez dos jovens, seja na precipitação dos jovens, essa amizade podia transparecer.
Lasar Segall tinha pouco menos de 30 anos quando fez o quadro. Era já homem viajado e as enciclopédias de arte assinalam justamente o ano de 1917, ano em que o quadro “Doppelbidnis Margarete und Zoe [Duas amigas]” começou a ser criado, como um ano de muito exercício expressionista da parte dele.
Se falava mais alto o desejo de subjetividade, em vez de uma opção pela documentação, então realmente minha ideia de amizade está incompleta.
A concepção de Lasar Segall e a minha concepção pouca intersecção fazem. Fica de todo modo a ressalva: nunca tentei expressar essa minha concepção, aliás mutante, na linguagem da pintura.
A minha visão de juventude, a minha visão do ato de retratar o etéreo, a minha necessidade de brincadeira, e ao mesmo tempo de provas quase físicas, não acha conforto no quadro dele.
Saio indecisa da decifração, da posição de quem olha.
Minha passagem pela escola, na quente cidade de Piracicaba, deu-me amigas muito diferentes de mim, graças a Deus, várias delas espalhafatosas.
Na faculdade, há uma amiga impagável, nesse gênero pastelão. Demos aula em dupla, durante um tempo, era a primeira experiência formal de uma e de outra como professora, e eu respondi um sonoro e convicto "sim", a uma pergunta feita em voz alta por um aluno, ao passo em que ela respondeu outro sonoro e convicto "não" para a mesma pergunta.
Como adulta, que quero eu das amizades?
Notícia regular de uma amizade amorosa, de fé, que atravessa continentes. Se hoje acredito mais, é muito por causa de uma amizade, de uma intimidade que eu consinto, de um reforço daquilo que considero virtudes minhas - e dela!
Se fosse eu a pintar-nos, a mim e a ela?
Nem pensar, a artista não sou eu...