Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


domingo, 22 de dezembro de 2013

Luzes de Natal







sexta-feira, 29 de novembro de 2013

À espera dos bumbos - I













segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A sobremesa, por favor!


Existem leituras, visões de mundo segundo as quais não vale a pena apreciar muito um acontecimento ou uma tendência, porque algo maior (e pior) está por trás da qualidade que nos fez parar, refletir e agradecer pela visão. É mais ou menos como querer assegurar um olhar cínico para o mundo, porque de perto tudo é bonito, ao passo que, quando nos afastamos, sobra o produto, a contingência, o que não foi escolhido para ser bonito, mas que se calhar até ficou interessante…
Voltando à comida e à exploração dela na televisão, tema do primeiro post de novembro, gostaria de não resvalar para esse negativismo; minha ideia é escrever sobre o que me parece bonito e gostoso no programa Britain’s Best Bakery, que visita padarias e as desafia a mostrarem suas especialidades e sua capacidade de cozinhar os clássicos locais com um toque pessoal. O programa tem acertos e erros, mas se eu compartilho o que considero os acertos, elevo a fasquia, não elevo?


É uma dupla que apresenta o programa, Mich Turner e Peter Sidwell. São novos, a abertura de Britain’s Best Bakery fala neles como premiados especialistas: ela faz bolos e ele faz pães artesanais. Não tratam mal os concorrentes, de forma alguma, nem são exatamente divertidos. Se eu fosse buscar aquela ideia do filme “O Tempero da Vida” (2003), de que pessoas que entendem de temperos entendem também de conversa, pois temperam suas conversas, teria que desconfiar deles… Os gestos estão lá, enquanto eles falam, mas serão gestos contidos demais? Existe isso, o ser contido no mau sentido? Eu, que na infância já fui conhecida por "Paçoquinha", como poderia falar mal de qualquer forma de delicadeza?! Enfim, eles buscam e comentam entre eles o facto de uma padaria ter um ambiente acolhedor ou o facto de representar a comunidade, mas esses comentários não chegam ao concorrente, pelo menos não no material editado, para que nós vejamos como as críticas e os elogios são recebidos. Ficam para nós as bonitas paisagens dos locais onde essas padarias se instalaram e a sugestão de que tentativas de embelezar o ambiente e os pratos são fúteis, se não tiverem alma, se não tiverem substância.
Eles vão falando nas características que uma comida bem feita deve ter (a crosta do pão deve ser estaladiça, o miolo deve ser elástico, os sabores têm de estar equilibrados), mostram ingredientes e técnicas, destacam tudo o que pertence à história da culinária do Reino Unido, sem esquecer como é importante inovar.  Terão, por isso, um quê diplomático, outro ingrediente de que o filme “O Tempero da Vida” fala, quando escolhe qualidades de quem cozinha? A certa altura de um episódio, Peter Sidwell confessou, antes de comer um pão de beterraba, que o ingrediente principal daquele pão não o atraía, porque sabia a terra. Ele ia provar, no entanto, pois essa é uma parte da sua profissão… Comeu e apreciou. O pão, além de tudo, era lindo!
Em um outro episódio que eu não vi por completo, apareceu uma concorrente brasileira, que ao chocolate das suas florentinas (que confecionava pela primeira vez, o que acontece a vários concorrentes estrangeiros no Reino Unido abordados pelos apresentadores com um pedido bem específico) acrescentou um pouco de pimenta malagueta. Os apresentadores gostaram, e mesmo assim ela foi eliminada do desafio, pois houve uma concorrente melhor sucedida do que ela em outra prova.

Parece que o programa é um sucesso. Parece que cozinhar é um sucesso. Parece que associar a terra e as tradições culinárias é um sucesso. Ainda bem. Há quem se exiba ao cozinhar, pura e simplesmente, já tenho cruzado com uns tipos assim. Há quem aprenda ou quem se recorde de que as emoções, tão desperdiçadas hoje, vêm também de um certo tempero, que pode ser entendido como metáfora ou como realidade concreta. Em família e fora dela, às vezes é justamente o tempero errado que nos faz abrir espaço para a emoção certa e, quem sabe com muita sorte, para a abertura mais bonita, a da alma. O filme do qual eu tirei isso também, “O Tempero da Vida”, foi-me indicado por um amigo do coração, bom ouvinte e ponderado. Como muito do que eu vejo e ouço nos últimos tempos, filme e amigo me fizeram recuar até mim, abraçando nesse gesto a minha origem e vendo, quem sabe eu esteja vendo de verdade, imagens promissoras, imagens que são como a materialização, a prova de que existe mágica no que somos e no que fazemos. E então é preciso insistir em fazer, em preparar, pôr à mesa, convidar a que provem o que fazemos de melhor. Não vejo ao microscópio uma sobremesa, por exemplo, mas os sabores doces foram postos nela e me ajudam a ganhar fôlego para encarar a vida de frente, como meus avós encararam, como meus pais o fizeram, como afinal eu tenho que fazer, numa terra tão linda quanto as terras de onde eu venho. Se, como na última cena da co-produção Grécia/Turquia, cada tempero em pó for meticulosamente disposto numa superfície, desenhando então uma imagem, e o conjunto depois for soprado para o ar, a nuvem que se verá me lembrará que está tudo aqui, sempre, como um desenho da nossa biografia, inserido num desenho maior. 
Li um post sobre o filme que chama a essa última cena de brega. É uma opinião. Não acho que tudo o que vemos e provamos têm de ser uma epifania, tem de ser excepcional. Para mim, tem horas em que basta a sugestão deixada pelo autor da obra. Orquestrar muito bem ideia e execução é excelente. Nem sempre é o que chega até nós. E nunca é perfeito, nem quando é excelente. Eu não fico com indigestão nem ao ver Britain's Beste Bakery nem ao assistir ao filme "O Tempero da Vida". Fico com água na boca.

sábado, 2 de novembro de 2013

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Comida e modos de servir

 
Com que cara o mundo dos concursos de culinária, transmitidos pelos canais de TV a cabo, olha para mim quando eu o espreito?
Não me refiro aos bastidores, que eu posso conhecer mais ou menos ao aceder ao Google sem fazer muito esforço… e sem avançar muito na apreciação da coisa toda. Refiro-me às cenas de preparação dos pratos e seus comentários técnicos, que depois se desdobram em algum tipo de cultura, já que muita gente compartilha receitas culinárias, compra revistas para experimentar petiscos (e mais uma maneira de fazer bacalhau), acompanha esses concursos televisivos, escreve guias de restaurantes, dá orientações de nutrição nas farmácias, cria blogues sobre decoração de festas e por aí afora.
 
 
Por que os cozinheiros amadores se expõem da forma como os vemos nas cenas de TV?
Como sentem-se os chefs, com a aura que as emissões desses canais pagos ajudam a cultivar?
As reações dos primeiros, quando eles acabaram de se esforçar numa sobremesa que precisa ser agradável tanto para eles quanto para os chefs, mostram sempre as fragilidades que eles têm. Eles transpiram, emocionam-se, levam as mãos à cabeça e até confessam erros, preferências pessoais e desafetos no concurso (se estivermos a falar da versão dos EUA, na qual esse último aspecto é francamente valorizado).
O refinamento que os chefs buscam (e que alguns amadores ingleses, por exemplo, não entendem como uma meta fundamental de um cozinheiro) tem que ver com o uso de ingredientes incomuns, ao que me parece. Eu, ao menos, não conheço uma porção de nomes que vejo nas legendas em português: “pastinaga”, “bérberis”, “ume”, “galanga”. Entre eles, já percebi que muitos têm que ver com a forma de cozinhar e são repetidos no idioma original, sem tradução: “jus”, “confit”, “velouté”, “sabayon”. A pose que os chefs ostentam, acho que eu já conheço.
Pois os moldes desses concursos culinários são parecidos com os de um reality show, na verdade é como eles estão classificados, mesmo. Para mim, é aí que a diversão diminui um pouco. O que parecia um mundo a que eu nunca estive muito atenta, mas que hoje faz lembrar a família e os dotes transmitidos, a família e os seus sabores, aromas, encontros, afinal soa como um mundo muito encenado, dramaticamente perigoso e pouco acolhedor. Uma das temporadas do MasterChef que eu acompanhei teve como vencedora uma concorrente encantadora, com uma deficiência visual, e como segundo lugar um rapaz que parecia muito tenaz e que há poucos dias faleceu, no que a imprensa norte-americana falou em suicídio e em um transtorno bipolar. O climão do programa terá, de algum modo, exacerbado uma tendência aos extremos? Não sei, mas ficam a dúvida e o pesar. Era um rapaz muito novo, muito simpático, e a temporada foi dura, cheia de intrigas.
Nas edições norte-americanas do MasterChef, por sinal, a marca desse tipo de entretenimento é mais evidente. Os concorrentes falam para as câmeras uns sobre os outros, num cenário lindo de morrer, e regularmente ouvem tanto o elogio quanto a provocação meio mal educada, vinda dos chefs e de alguns convidados, que até se dão ao luxo de chamar um prato de ridículo, se não o consideram suficientemente sofisticado. Não sei se noutras edições, como a inglesa (que é a mais antiga, tanto quanto eu apurei, tendo começado em 1990), os concorrentes e seus chefs são mais equilibrados de verdade ou se é a questão da exposição que os atinge de outra forma, por isso ela é administrada de outra forma também. Enfim, pode ser que nem lhes interesse criar uma personagem de sucesso e andar a sustentá-la desafio após desafio, episódio após episódio, porque isso provavelmente faz perder o foco no desempenho como cozinheiros e eles são concentrados, basta ver a narração do programa, tão linear, tão monótona e quase engraçada por isso!
Quanto às tarefas que os concorrentes enfrentam, há as propostas com um prazo, as propostas com um tema, propostas com uma “caixa mistério”. Gostei de ver, no MasterChef UK, a ida dos concorrentes a restaurantes conceituados, já na condição provisória de cozinheiros profissionais. Eles receberam orientação na cozinha, viram demonstrações, tiveram a oportunidade de sentir na pele como é o dia a dia no ramo. Ficaram estafados, tiveram pequenos acidentes, como queimaduras nas mãos, puseram à prova a capacidade de obedecer e a de liderar, de responder e de controlar os nervos. Umas vezes serviram gente muito rica, acostumada à boa comida (e houve vários comentaristas dos jornais ingleses a criticar o esnobismo dessa opção), noutras vezes serviram estudantes que apreciam sempre os mesmos pratos, pratos comuns como frango e arroz com ervilhas. Neste caso eles estavam numa escola indiana, pressionados pela responsabilidade de cozinhar enormes quantidades de comida e servi-la quente, suculenta e bem condimentada.
Fui tocada pela ideia do controle dos nervos, especificamente, quando um concorrente habituado a complicar o menu, digamos assim, diminuiu um pouco a exigência e passou um desafio inteiro a lidar com a sobra de tempo. Ele disse a rir que estava um pouco surpreso com o efeito da calmaria! Mas depois eu vi que esse era um concorrente que vivia no campo, que criava suas galinhas etc, e que talvez já pudesse ter experimentado a ideia de sentar em cima do momento e reinar, e celebrar o auto-controle, a boa disposição que vem da prática sossegada e realista de um prazer saudável, de um hobby a que podemos ter direito. Pergunto-me, sendo assim: só dentro de casa é que a gente consegue essa proeza de não entrar em parafuso com as expectativas auto-impostas? Não sei, mais uma vez eu não sei responder. Meu orientador de doutoramento uma vez afirmou que nossa época é tão, mas tão presa, tão menos livre do que pensa que é, pois nem para que um fulano abdique do cigarro, por exemplo, existe grande chance de êxito! Se não estou em erro, ele comentava o livro A consciência de Zeno.
Mais para a frente, nesse mesmo programa do concorrente agitado e muito novinho, ouvi falar da importância de ir provando a receita gradualmente e de ter a bancada de trabalho organizada e voltei ao mesmo: onde é que, hoje, nos ensinam a ter serenidade, equilíbrio? De novo e de novo ela é solicitada, ela faz bem, sem dúvida que faz, e não a vemos na escola, não a vemos em família, necessariamente, não a vemos nas ruas, definitivamente. Há que acordá-la de dentro de nós, sem barulho, para que no mínimo algumas tarefas sejam cumpridas com paz de espírito? Para quem, como eu, emociona-se demais, é difícil! A parte da organização, ok, tiro-a de letra! Quanto a estar imune ao burburinho, bem isso custa…
Deve ser por aí, também, que se alinham os comentários dos chefs acerca de comida simples. Para mim, mera observadora, observadora recente, são comentários ligeiramente contraditórios com aquele outro pedido deles, já referido neste post (pelos ingredientes invulgares, pela apresentação impecável, criativa), mas têm o seu interesse. Como no filme de 2007, Ratatouille, em que o crítico mordaz só se rende à recordação familiar de um prato de beringela com tomate, abobrinha/curgete, pimentão/pimento e certos temperos. Que delícia de filminho, que prato de dar água na boca, se a gente cresceu acostumado a ser servido, em casa, com carinho e com algum elemento da tradição. Na minha família, esse lugar era o do frango com polenta, posto à mesa com umas fatias de queijo por cima, que então víamos derreter quando enfiávamos a colher para nos abastecer. Era o lugar da canjica e do arroz doce, do nhoque, meu Deus, preparado pela minha mãe e pela minha avó com delicadeza e molho de tomate caseiro… Era o lugar das esfirras, influência da família de uma tia com outra origem.
Termino então a minha incursão com essa nostalgia  do bom e do caseiro e com mais uma.
Vivo em Portugal faz pouco mais de sete anos, já o disse em vários posts, aprendi a gostar de muitas receitas locais, como a massa a lavrador, e não deixo de me sentir mal com o desprezo pelo que há em nós de acolhedor e de estável, quando me dou conta de que, no Brasil, lugar da minha cultura de origem, pouco do que eu falei neste texto faria sentido.
Só mais um pouco de fôlego, eu peço, para estas questões: reunir concorrentes de diversas partes do país e não recorrer ao riso fácil, para fazer de conta que está tudo bem entre conterrâneos? Falar em pratos cuja criação está balanceada? Rituais, tão caros à culinária, para quê? Herdar habilidades e cuidados familiares na alimentação e no convívio, para quê? Ver televisão e com ela abrandar, para quê? Valorizar o regional ao mesmo tempo que o estrangeiro, o atual ao mesmo tempo o antigo, para quê?
Tanta gente disposta a agredir, a julgar, a misturar qualquer assunto à política, a rir e não a sorrir… assim, não há como fazer uma refeição em paz! Não há como admirar em paz,  sem deslocar esse ou aquele grupo para um canto, de maneira brusca, por incapacidade de ouvir e de ponderar. Tudo é uma bomba lançada contra a sua certeza individual.
Um pouco mais de inocência, vamos lá, temperada com muita prudência, pois o tempo que passa não envergonha ninguém, passa para ensinar e para enriquecer a cultura e não para dizer que esta é a hora de romper com tudo, pois nada presta. O Brasil é um mundo novo, mas se queremos de verdade chegar a ter voz e a ter orgulho, penso que só com pratos limpos.

sábado, 26 de outubro de 2013

Menina, menina (com o dedo em riste!)

Encontrei outra disposição e outros sentimentos. Obrigada.
Com energia oscilante, você sabe, tenho procurado um mundo.
Talvez eu seja menos prudente, meu amigo. Minha energia tem-me levado a procurar quem tem calma para perder-se e encontrar-se, neste mundo, até o fim.
Não ria de mim, por favor, se não me abandonou até agora não ria! Os amorosos andam por aí, eu só preciso descobri-los.
Mas ainda ontem eu voltei ao velho padrão e, em seguida, dei o mais recente telefonema a pedir socorro, sem apresentar um porquê muito claro. Quero pintar melhor o retrato da cena, conhecendo o tamanho da sua paciência para comigo.
Eu estava cercada de crianças. Falavam alto e o som era tão agudo, que só me ocorria pensar numa explosão. A irritação foi física, acredite, parecia uma alergia. Eu poderia atribuí-la agora à poluição do ar. Se eu quisesse esconder-me de mim e de você é o que eu diria, mas já reconheço este meu mundo fechado quando nele estou, mais uma vez, quem sabe a derradeira.
Foi uma reação muito humana, temos trabalhado arduamente como humanidade para acumular queixas e aumentar culpas.
Mas o ponto foi ganho ao final da partida, seja como for, pois eu não explodi! Nem elas. Vê como há esperança?
Numa outra etapa, quando eu já me comunicar melhor com quem dá-me mimos, direi que podemos pensar de maneira diferente, mas somos parecidos, queremos nos defender de qualquer agressão e então também nos defendemos de um comportamento legítimo. Direi, por fim, que não adianta fugir, uma hora os outros acertam e nós, nós estamos errados.
Só agora observo que não fiz uma única pergunta àquele grupo de crianças! Será que realmente me interessam, Salvador, as pessoas interessam-me?
A você admito que a leveza faz-me falta nos momentos de tensão. Porém, entender nunca é suficiente, continua-se a errar depois que está tudo mais claro, de acordo?
Oh não, Salvador, e eu não esqueci do nosso acordo. Vou contar meu sonho da madrugada que antecedeu o embaraço e o telefonema, pois estive monossilábica contigo. Enfim, foi justamente antes do deslize que o sonho aconteceu.
Sonhei com meus dentes partidos, a gengiva a sangrar, e quando vi o realismo do machucado no rosto de alguém (porque então parecia ser o rosto de outra Maria), a cena me incomodou demais. Temi estar prestes a cair, entretanto não imaginava nem o passo em falso nem as consequências, imaginava o impacto da boca na quina, a boca que eu deveria ter mantido mais fechada por algum motivo que virou névoa durante aquele pedaço do sonho. Mesmo assim insisti em subir escadas, em sustentar-me um instante nas beiradas. Podia cair, podia não conseguir proteger-me, um estrondo no meio da normalidade, mas eu continuava em movimento. Alguns julgavam que estar parada era uma afronta à normalidade. E eu não sabia o que fazer em nenhuma daquelas cenas do meu filme, Salvador.
Não foi por acaso que hoje de manhã cedi, como se vê. Cedi após ter suposto que tinha as rédeas nas mãos, a controlar o meu cavalo e a tropa toda.
Aparentemente, só acordei naquela sala improvisada, quando ouvi o eco das minhas palavras descontroladas e sem sentido, ferindo o ouvido dos outros.
Saí de lá sendo o eu que menos desejo encontrar por aí.
Diga-me, porque eu preciso sair para caminhar: qualquer um teria reprimido a bagunça, para conter o ímpeto daquelas criaturas? Quando é que, nesse toada das responsabilidades e dos atalhos até uma solução, uma pessoa se esquece de ser tirana?
O sorriso contido de uma menina numa das cadeiras da frente mostrava-me um lampejo de satisfação, enquanto eu tentava disciplinar o caos e me reencontrar. Ela já sabia de tudo.
Até parecia ter esperado aquela minha reação. Pode ser que não tenha forças para falar. Uma menina desajeitadamente obediente, que se tinha feito notar uma três vezes desde que eu entrara para substituir a professora de História.
Conservou a boca um pouco aberta, como se estivesse a dizer exatamente o que eu dizia com o dedo em riste, no final do sermão: silêncio.
Não era muito mais o que ela pedia. Um pedido de cada vez, ensinou-me a menina. Pudera, ela descobriu-me primeiro e não precisou buscar-me no fim do mundo.


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Vítima, agressores e vingança: receita moderna de intolerância?


“É a nossa vez”, parece dizer quem se anuncia como “do bem”, ao levantar a voz contra quem é “do mal”.

É cada vez mais frequente o discurso do vingador, pontuado de pequenas fórmulas.

Os tradicionais jornais, no seu modo virtual, e as redes sociais estão cheios de berros, de brados, de insultos, de opiniões sem flexibilidade e de um humor inconsequente, caso dos que não se incluem no grupo dos vingadores, mas fazem troça de tudo à volta.

Sinto-me incomodada com o recurso às fórmulas, aos rótulos e também com a recusa em compreender. Cada um tem seu ritmo, mas o trânsito fica caótico nessa conversa entre fortes, fracos, displicentes… as palavras se sobrepõem, umas abafam as outras, e pouca gente tem tempo e profundidade para mergulhar nessa trama, sem culpar ou imitar quem grita mais alto.

Sinto o mesmo incômodo quando ouço que determinado debate público não tem importância, porque não é uma prioridade tratar daquele assunto, naquela hora. Tá certo que as pautas são manipuladas, mas com um pouco de paciência, de ironia e de habilidade, devíamos contribuir para desmanchar conveniências, para retirar o poder de quem nos obriga a olhar para um tema, evitando outros.

Os assuntos vão surgindo, uns são incontornáveis, outros, perfumaria; poderia ser suficiente para nós, como grupo muito muito amplo que somos, seguir em frente, se a perfumaria for assim tão irritante (e tendo ou não o que propor acerca dos assuntos incontornáveis) ou assistir ao debate dito pertinente e oportuno, para aprender mais.

Mas, num toma-lá-dá-cá a propósito de uma notícia mal redigida num portal da Internet, por exemplo, facilmente se nota como os participantes não têm norte, como comentam a notícia em si ou a falta de qualidade do texto, sem observar o mínimo de coerência no que verbalizam, sem respeitar pelo menos o princípio da inteligibilidade.
 



No que diz respeito ao Brasil, é batata! Entendo que as pessoas estejam dececionadas com os rumos da política, com o descontrole da violência, mas não haverá uma pessoa sequer, um grupo para funcionar com contraponto à prática de transformar qualquer debate em queixa contra o governo federal e contra “os direitos humanos”? Ninguém para aconselhar que uns e outros usem menos palavrões e mais metáforas, e mais provérbios, e mais imagens?

De longe, o que eu suspeito é que as pessoas que dão a cara estão enfurecidas, sem ideias muito responsáveis, sem coragem de encarar o mais imediato, que é o dia a dia no seu mais inevitável conflito. As escolas são barris de pólvora, vamos trabalhar e vamos a elas entregar nossos filhos para a obrigação de estudar, com a melhor participação possível?

As ruas numa parte do Brasil têm uma frota de carros absurdamente grande, por isso vamos com calma ao volante, tenhamos respeito dentro dos meios de transporte público, com o ciclista e como ciclista, com o pedestre e como pedestre.  

As greves nas universidades já eram uma opção quando eu ingressei no curso de Letras, em 1994. Desgastavam alunos, professores, não resultavam em muitas contratações (pelo menos não foi o que eu vi, como aluna), quebravam o semestre e o ano letivo e davam uma insegurança enorme no principal, que é o aprendizado (do conteúdo, da cidadania). Hoje, em algumas faculdades, foram colocados nos corredores até sofás e eletrodomésticos dos alunos, como forma de protesto. Quem resguarda o direito de outros membros da comunidade, que podem precisar transitar dentro dessas faculdades livremente? Quer dizer que a mais inteligente resposta aos tiranos é tiranizar os outros?

Já escrevi muito superficialmente sobre uma ideia que eu conheci por meio de um livro de Alberto Manguel, escritor argentino, e agora volto a ela. O livro é No bosque do espelho.

Ele tem um raciocínio bem fundamentado em autores conhecidos do público da literatura de ficção (como Borges, Kipling e Conrad). Na leitura que eu faço do capítulo VII, “Crime e Castigo”, ele mostra como prevalece entre nós a ideia de um direito à vingança.

Segundo ele, essa ideia é o resultado de uma intolerância que, por sua vez, é retrato da estupidez de alguns regimes. Quem tem mais poder e não sabe usá-lo, oprime; quem é oprimido às vezes responde com a mesma estupidez das autoridades desse regime e, preso a ela, não enxerga mais e fica a falar e falar para os estereótipos, isto é, entra numa conversa enlouquecida com os únicos representantes que vê, sem suspeitar que existem, no próprio mundo dele, outros grupos, outras vozes, outras razões.

Manguel salienta que entre a literatura que é mero rabisco (por mais refinada que seja) e a possibilidade que só ela dá de abrir horizontes a partir de rabiscos, existe uma saída digna até para quem foi tomado pela ideia de vingança.

Está no final do capítulo, cujo subtítulo é “Idade da Vingança”, uma curta história real sobre um homem equilibrado que, depois de perder filho e nora, escolheu a vingança. Nas últimas linhas, o pote de ouro no final do arco-íris: quem tem força maior que a da vingança, quem tem um valor mais alto, precisa fazer bom uso dos seus argumentos e, com eles, apontar um caminho de mais dignidade. No caso verídico relatado por Manguel, estão um poeta e Mães da Plaza de Mayo, ambos oprimidos com a mais dura das crueldades. Um deles acaba persuadido pelo outro a crer na liberdade de nos distinguirmos dos opressores, ao abandonarmos a ideia de vingança. O resto é história.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Biografias, o dinheiro que não queremos dar e cultura


A segunda parte do relato de Christhiane F., em livro, foi anunciada ao público brasileiro por um jornal paulista de grande circulação, o Estadão.

Vi a reprodução desse anúncio no Facebook e arregalei os olhos ao ler os comentários, no link https://www.facebook.com/photo.php?fbid=752230891458642&set=a.124486140899790.24501.115987058416365&type=1&theater. Ninguém obrigará um leitor a adquirir o livro, não se trata da indústria da moda nem da farmacêutica. Por que raios, então, falar numa figura que estará, supostamente, a contar conosco para ganhar uns trocados, contando em seu livro o que ninguém quer saber?

Nesta época de estranhamento perante a publicação de biografias, vale a pena clarificar ideias - ou pelo menos aliviar a minha tensão! Facebook pode ser superficial, e quando menos esperamos, estamos cansados e desanimados com a repercussão de uma notícia ou outra. Eu me acho, então, incrivelmente mais só.

Agradeço, portanto, a todos os que se manifestarem nesta discussão. Quem sabe o blog nos dá suporte para outras conversas, menos mascaradas.

No meu país de origem, o Brasil, artistas como Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil e Roberto Carlos, muito diferentes uns dos outros, puseram-se francamente contra a veiculação de biografias não autorizadas pelo biografado. Fizeram pressão para inviabilizar a publicação desse tipo de livro, de que eu gosto bastante e que, feito com seriedade, deve dar muito trabalho ao escritor.

Ao primeiro do grupo, Caetano Veloso, foi direcionada uma carta aberta, como tentativa de fazer um contraponto e chamar à realidade, sim. O autor da carta é Benjamin Moser, autor também de uma longa biografia de Clarice Lispector que eu comentei neste blog. O texto dele para a Folha de S.Paulo saiu em 09 de outubro de 2013.

Salta aos olhos que esses figurões da música brasileira, acima da média em termos de realização artística, façam justamente o contrário do que se busca hoje na própria arte. Pois pelo menos as HQs/BDs, com que eu lido profissionalmente, estão voltadas para a exposição de biografias feitas com muita sensibilidade e muito labor. A mim não importa muito que sejam feitas a partir da decisão pessoal do biografado ou não. Trazem histórias, o resto é conosco.

Li durante o último julho Persépolis e Fun Home, respectivamente de Marjane Satrapi e Alison Bechdel. Li e recomendo.

A primeira autobiografia é uma delícia, uma vez que está lá uma boa dose de crítica refinada sobre as pequenas e as grandes decisões da adolescência, representadas, por exemplo, numa sequência de vinte e duas pequenas imagens da metamorfose física de Satrapi, no período que ela viveu na Áustria.


Ela nos contou que fizera muito para encobrir as mudanças do corpo, até perceber que, se a mudança agradava ou não a quem tinha uma cultura diferente da dela, azar! Ela precisava se assumir e andar satisfeita com a boa receção, vinda de colegas austríacos de quem ela menos esperava admiração.

A autora também não abriu mão do direito de falar de seu país, o Irã/Irão. Questionou formas de educação, mostrou o valor que as boas relações familiares têm, alfinetou de maneira inteligente pessoas com as quais conviveu, enfim, compôs um álbum gráfico sem castrações (visíveis).

Ao ilustrar uma parte da sua educação formal em Belas Artes, contou que as aulas de desenho do corpo eram dadas sem modelos nus à disposição do grupo de alunas e que, por isso, feitos todos os esforços de observação, restava-lhes a habilidade para retratar as pregas das roupas, sem a menor possibilidade de aprender a desenhar membros! 

Fiquei com a leitura, talvez equivocada, de que ela teria escrito e desenhado Persépolis porque descobriu que se integrar requer muita consciência, bons ouvidos, humildade e uma constante busca pelo melhor na nossa vida.

Não me parece uma descoberta fácil nem generalizada. Vale a pena partilhá-la, sem dúvida.

O livro de Alison Bechdel, por seu turno, é muito mais denso. As relações familiares, tópico do livro, eram presas, tristonhas, cheias de segredos que faziam com que a auto-afirmação fosse tarefa mais dura, só levada a cabo com sucesso porque naquela família a criatividade era uma marca, uma meta.




Mas a leitura de Fun Home é, na mesma, muito enriquecedora. Vale a pena por causa das muitas referências à literatura de ficção, vale a pena pelo final, comovente, pelo traço da desenhadora/desenhista.

Dito tudo isto, quanto eu lamento pelo momento que o Brasil passa! Finalmente existe maior estabilidade financeira, mas ela nem de longe se transforma em um rápido crescimento cultural no seu sentido mais pleno!

De longe, não é isso que se observa. Representantes tão conhecidos e tão valorizados quanto os músicos já mencionados aqui nadam contra a corrente. Livros com seu contributo, por que não, como Christiane F., são recebidos como se o único parâmetro de avaliação (e é preciso, mesmo, fazer comparação fora da escola, na qual ela tem efeitos didáticos?) fosse uma obra recente, como a da auto-intitulada Bruna Surfistinha, que eu arrisco dizer que não foi assim tão lida…

Será que as classes média e alta brasileiras não vão ter, nunca, espelho que revele o quão limitadas e limitantes são?

Quero saber dos meus ex-alunos a lerem e lerem, sem restrições, porque se recusam a ficar pelo mínimo ou pela opinião comprada aqui e ali.

Quero menos rancor, menos interesse pelo que de dinheiro circula, quando esta ou aquela obra chega ao mercado.

Quero mais recursos para lidar consigo e com o outro, e esses recursos a arte dá, mas temos que nos apresentar diante dela com boa vontade e algumas armas, para escapar daquilo que Alberto Manguel, muito sabiamente, tem chamado "A Idade da Vingança", isto é, a nossa era!

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Lúz à altura

A que hecatombe sobrevivi?
Dentro de um cómodo que faz lembrar um grande cubo revestido de azulejos, faço-me essa pergunta.
Os tons de verde que vão da água-marinha ao piche parecem-me muito impessoais, o pé-direito é altíssimo e, no entanto, eu não saí de mim ao entrar aqui, eu não me sinto intimidada. Tento estar, apenas.
Às minhas costas, a porta de madeira deslizou com todo o seu peso, mas não fez barulho. Estou presa, obrigada a contemplar. Afinal, o espaço é só um átrio, não um palco para uma surpresa qualquer. O que temer?
Pois.
Entretanto, a pergunta inicial muda pois eu treino e insisto, mas não sei o que é estar apenas, acabo por ser a menina de sempre, a menina que fantasia para poder estar. Pergunto-me, então, se estou neste cenário para atender ao convite de um artista, para viver sob o efeito do ambiente com que ele sonhou. Imagino-o a imaginar, a montar o cubo, plano após plano, e a mandar-me o chamado, até me ver entrar.
São obras dele os três bancos de madeira encostados à parede?
Estou tão cansada que não cedo à tentação de sentar, que estou eu a magicar, então?
Sigo em frente e, quando chego ao banco - e ele está vazio -, permaneço em pé.
Olho para a porta, de novo.
Nem pull nem push, nenhuma aragem pela fresta. Nem uma minúscula linha de luz vinda do exterior.
Há sussurros e ao procurá-los noto um longo balcão. Uma das suas pontas está atrás da linha da porta, protegida por uma coluna. Não enxergo a outra. Talvez esteja atrás de mim, além do limite até onde eu avancei.
São funcionários que sussurram por detrás desse balcão. Parecem trabalhar para que eu me sinta inquieta, enquanto falam entre dentes.
É melhor evitar o ruído. Deve haver muito mais gente corredor afora.
Este corredor terminará?
Mais uma vez esforço-me para estar alienada do clima que minha observação ruidosa criou: começo a repassar item por item o que terei de dizer na próxima sala, a sala que eu não consigo antecipar como é. É mesmo um espanto eu ter reprimido esse discurso durante tanto tempo!
Finalmente, repito em silêncio as orações que sei.
Quero estar comigo na outra sala e se lá eu chegar a falar, farei-o só por mim, só em meu nome, sem levantar bandeiras.
Eu consigo.



Minha hecatombe foi de ordem moral, é importante que eu diga.
O que quero explicar é que eu não cruzei uma linha na rua, a partir da qual vi tudo em ruínas. São os meus nervos que estão em pandarecos e não os edifícios, a sinalética desta vila ou o calçamento de paralelos. Sinto calafrios a percorrerem meus braços. Tenho visões em que sucumbo à fraqueza.
Minha história se arrastou por mais ou menos oito anos.
Sinto uma enorme culpa, mesmo sabendo que seria muito melhor escolher a hipótese do convite ao “faz de conta que isto, hoje, …”. Eu dependeria do artista e não de mim, dona de escolhas tão questionáveis.
Volto a fixar o tríptico verde do cubo, o balcão, a coluna. Ao lado dela, numa parte em que já não restam azulejos, veem-se rachaduras finas.
Mais uma vez, neste dia, alguém fala para mim sem que eu ouça. Uma cabeça de perfil, com o ouvido em evidência, projeta-se na minha direção. Parece dizer:
- Escuta!
E eu escuto.
- Estão todos curiosos. Mas ninguém a seu favor. Não descaia, tudo se ouve, grava e repercute como o seu oposto.
O oposto. Será a regra deste jogo?
Qual é o oposto da frase que se lê à entrada deste edifício, então, qual é?
Não estou certa quanto ao que virá, mas houve um antes, uma entrada até este lugar. Eu passei por uma frase, tenho a certeza.
Esforço-me para virá-la do avesso e… nada.
Meu latim enfraqueceu, a frase não faz sentido para mim.
Tenho receio de que seja a epígrafe da minha história, de que seja uma profecia.
No pilar em que se lê “Iustitia Fons Pacis”, vi também uma fonte banhada de sol, murmurante, tão viva quanto uma criação artificial pode ser.
A agitação da água não produziu em mim um efeito calmante quando passei. Bloqueei tudo por onde passei até agora. Nenhum sinal de vida concreto.



Antes de chegar à fonte, ao pilar, à inscrição e à sala com jeito de cubo, no entanto, tive um sonho. Os artistas sonham e realizam, eu sonho.
Depois de entrar no grande cubo, observar e insistir na minha história, algo na atmosfera fez-me recuar à entrada deste prédio e, dela, recuar mais, até a madrugada.
Voltei a ocupar-me do sonho. O facto é que de manhã saíra do estado de sonolência para o de vigília a pensar nesse sonho, tentei lembrar-me dele diante da fonte e da inscrição profética.
Lembro-me dele agora.
O sonho me lançava, sem mais, a um detalhe da fachada de um edifício antigo e cativante.
Ali eu experimentava um prazer infantil com a visão de umas pedras escuras, notáveis mesmo sob a pouca claridade daquela hora.
Ah, sim, revelei que era noite, no meu sonho? Era. Minha efabulação parece preferir o escuro e o silêncio.
As pedras do edifício revestiam uma parede côncava. Eram grandes placas escuras e brilhantes, e disfarçado, no centro da concavidade, estava um nicho.
Eu não desviava o olhar até a imagem que o nicho protegia, para mim não havia santo ou milagre mais presentes do que o meu.
Os olhos passeavam sem compromisso, mais de uma vez eles riram para a centelha que eu trazia ao colo, a minha natureza, meu milagre, meu feixe de luz.
Eu não estava sozinha no sonho.
Ele sorria também e roçávamos, na passagem estreita, as folhas das plantas enfileiradas - e elas eram ainda mais lustrosas do que as pedras.
Num piscar de olhos já tínhamos subido a um apartamento todo branco, de limpeza e de reflexos, iluminado como meu filho, iluminado como eu podia ser.
E assim, com a sensação de serenidade por termos cruzado a porta de casa e reencontrado nossos aposentos e nossa simplicidade, o sonho se desvanecia.
Restavam duas coisas: a certeza de que nós dois seríamos felizes e uma estranha luz a insistir em iluminar cada um dos cenários em que eu nos vi.



Mas e o que vem a ser isso de felicidade? Ela agora tem luz, por acaso? Se eu nunca tive garantias nenhumas!
Quem me dera uma máquina que pudesse concretizar sonhos, concretizar o maior dos sonhos, a felicidade! Penso nisso, na existência dessa máquina, em algum lugar, para eu consentir em dizer meu “sim” à vida sem timidez, pois eu quero ser feliz.
Seria necessário um alarme, como naquele jogo infantil da batata quente quente quente. No meu caso, o alarme viria de uma máquina.
A tentativa de recordar o sonho tinha acabado de me ajudar a descobrir um mecanismo, em mim, que era capaz de emitir esse sinal.
A felicidade como uma luz de presença, só que andante, um foco, melhor dizendo, um arquivo em movimento, um recado de que a escuridão tem um caminho e tem suas presenças, também. À escuridão não se chega sozinha.
Eu que ao longo de oito anos perdera forças e vira um poço fundo, com uma máquina muito bem calibrada, que eu nem desconfiava ter, seria capaz de mostrar uma réstia do poder e do mistério de conhecer, finalmente, a minha missão.
Uma máquina de corda, uma máquina que iluminava tudo o que estivesse à altura do meu coração.
Ela sinalizaria os meus acertos.



Mas calma! Água nessa fervura. Para o lado com a máquina do coração e com a missão.
Eu estivera a divagar sozinha, em pé diante de uma fonte e de uma frase latina, por causa de um sonho, e estava a esvair-me do cubo do artista. Já são embrulhos a mais!
Preciso me inserir de novo nesta realidade de natureza morta, estar só e expectante, pois quando a hora se impuser e a decifração completa do sonho for interrompida, aqui, dentro do cubo, tudo o que pode ser chamado de inteligência vai ser exigido de mim; preciso fazer luz ainda sem a máquina, pois sei que houve um agente, fui interditada por um palhaço.
Na madrugada, quando o sonho virou fumo, foi o rosto dele que eu vi.  



Há quanto tempo tinha surgido, esquisita, a ideia do palhaço, estando eu bem acordada?
Um ano? Meses?
Um dia, o tão habilidoso e triste palhaço da minha história pôs maquilhagem a mais. E traiu-se.
Dele eu esperava uma revelação como as que acontecem aos vampiros: em frente ao espelho, ele seria entregue pela falta de imagem refletida. Seria assustador, eu correria, ele se afastaria também, receoso de que eu denunciasse a sua condição.
Mas foi tão diferente!
Eu vi mais naquele dia, vi o que não estava explícito naquele rosto, vi a camada de tinta que uma base queria encobrir.
A clareza veio e reconheci o traço escuro e arqueado de cada sobrancelha, o contorno esbranquiçado e grosso em torno de cada olho, o vermelho vivo das maçãs do rosto, a ponta do nariz que dava um ar perverso, e o abatimento de todo o conjunto. Era um palhaço cansado.
Tinha sido um disfarce, o tempo todo?! Um palhaço disfarçado de companheiro?
Disfarçado me levava pela mão à rua, disfarçado conduzia nosso carro, disfarçado fazia amor comigo antes de chegar o sono, disfarçado fazia o imenso favor de tolerar a minha insegura existência.
Virá hoje a usar esse disfarce? Terá, ao contrário, aberto o guarda-fatos para escolher outra pele, outro disfarce?
Possuirá uma máquina como a minha? Será cuidadoso com ela, a dar-lhe corda para funcionar? Terá um coração vermelho rubi, para legitimamente desejar que alguém esteja à altura dele?



Tiro da carteira uma presilha. Sem importância, rosa pálido e lânguidas flores roxas. Comprimo-a de leve com uma das mãos e com a outra ajeito o cabelo à altura da nuca. Prendo os fios, achando que com essa aparência me tornei parente próxima da costureira de um conto já fora de moda, costureira que trabalha todo o dia e nem por isso consegue comprar uma prenda à filha, a menina Tati. Que lembrança! A precisar de fôlego e com uma heroína dessas à cabeça! E, mais ainda, um artista sonhador a mover cordelinhos!
Estico-me, dou uns passos para o lado, mas não encaro de frente o palhaço que, neste preciso instante, entra na sala.
Respiro fundo.



Se desisti de sentar na plateia, sozinha, para o espetáculo que não tem artista, tem um farsante…
Só mais um pouco, querida, só mais um esforço, e a história termina com o fruto que não vai ser repartido, que não será engolido nem cuspido de volta à terra.
Seu fruto, carne da sua carne, a partir de hoje é livremente seu e aprenderá de ti a ter concentração e a desviar-se de embustes. Aprenderá de cor.
Você atendeu ao convite. No plano do artista estava escrito: “darás teu coração e ele lhe será devolvido, com outra forma, por outras mãos, batendo forte e com uma luz familiar”.
Mãe tem poder. À sombra da árvore de que a mãe toma conta não descansam palhaços, nem em seus galhos pousam predadores que consigam levar mais do que uma vaga recordação do seu fruto.
Enquanto uma mãe representa, vem como se fossem duas, em sonho e com os nervos à flor da pele.
É a missão que a unifica.
O próximo acto precisa ser organizado por sonhadores atarefados e hábeis.


segunda-feira, 27 de maio de 2013

Monstros S.A. ou Monstros e Companhia

Tenho assistido ao filme “Monstros S.A.” / “Monstros e Companhia” com meu filho.
Nunca o tinha feito antes de comprar o DVD para ele. Nem sabia que o filme tem mais de dez anos. Bom, eu ainda não era mãe na altura do lançamento e também já não era criança, adolescente ou livre para ver o que bem entendesse, à hora que quisesse.
Vimos juntos pela primeira vez há dias, e então pensei em uma série de detalhes que estão lá harmonizados.
Uma criança em frente à televisão ou ao computador, sem a nossa companhia, está bem se o programa a que ela assiste diverte e ensina, com um encanto próprio.
A música da abertura do filme é suave, o ritmo do jazz instrumental encontra paralelo no surgimento das imagens e na ação dos monstros que recolhem, que comem, letra por letra, a palavra que dá título ao filme. Eles abocanham, depois eles batem com a cauda e a letra salta etc, e meu filho acompanha os movimentos, muito atento.
E todas aquelas portas em tons de azul, ainda na abertura!? Tornam a aparecer no decorrer da ação e com muito mais força, em velocidade e em quantidade. Aparecem durante todo o filme, porque é da entrada de monstros pelas portas dos roupeiros, nos quartos das crianças, que estamos a falar nesse enredo. Mas as cenas em que elas voam, presas por cabos - e a sucessão delas parece interminável - é uma delícia. Lembrei dos teleféricos, do chapéu mexicano que faz nossas pernas balançarem no ar, mas no fundo é muito melhor.
Os corpos dos monstros também interessam. Fico a pensar no que parecerão a uma criança. Eu me pus a quantificar: este é verde, aquele é colorido, naquele predomina um bege mais apagado e por aí afora. Contei os que têm chifres e os que têm pontas arredondadas para todos os lados ou até membros molengos com os quais eles se equilibram; os que são muito altos e os que se arrastam pouco acima do chão; os que têm pelos e mais pelos e os que têm olhos e mais olhos. A Celia tem serpentes e guizo de cascavel no cabelo, a Rose mal tem lábios para marcar com o batom e até as pálpebras são pesadas – dela meu filho se esquiva no sofá da nossa sala. E não sou eu, não é você, não precisamos julgar, comparar conosco, dizer que fazem apologia dessa ou daquela aparência. São todos para rir e com um ou outro pormenor físico dá para simpatizar, seja pelo ar doce, seja pela alegria que emana (Mike Wazowski, por exemplo, nem se importa com a reduzida visibilidade do seu corpinho redondo e verde nos anúncios da empresa, ele vibra sempre e o espectador ri. Na versão portuguesa quem fez as falas dele foi João Baião e penso que o resultado está mesmo muito engraçado).
A ideia de que as crianças são nocivas e ao mesmo tempo úteis é uma proposta de mudança de perspectiva curiosa. Nosso mundo sem monstros e sem fábricas para extrair gritos infantis também passa pela noção de utilidade. Muito por causa dela é que as crianças não são respeitadas. Elas não produzem, assim como os idosos e os artistas. Há um livro de 1968, reeditado pelo menos mais cinco vezes, que mostra esses valores num texto claro e agradável de ler, por isso adequado ao estudante que não chegou ao ensino superior. O título é O Mundo Precisa de Filosofia, e o autor, Eduardo Prado de Mendonça. De acordo com Mendonça, quem gera dinheiro, quem pode ser associado à utilidade e ao progresso, tem prestígio. Quem alimenta o mundo dos afetos, por exemplo, é inútil. Tem seu valor, pois a inutilidade tem valor, mas pode ser mal cuidado pelos que só se rendem ao dinheiro, à utilidade e ao progresso.
No filme, o diretor da fábrica fala nas crianças cada vez mais difíceis de assustar para obter gritos e todos têm paúra de ser tocados por uma criança. As crianças são úteis, e mesmo assim são mal cuidadas.
Até que um génio na arte de assustar, um craque do susto é confrontado com uma menina e, fazendo na realidade apenas o que estava habituado, que é entregar-se às tarefas por inteiro, descobre o quanto uma menina oferece, de graça, e o quanto se arrepia, quando é amedrontada.
Sully, o mais eficiente assustador, dá-se bem com a menina porque é eficiente em tudo. Está onde é suposto estar, sem ressalvas. Se é necessário invadir o quarto das crianças, mesmo durante uma festa de pijamas, ele o faz. Se é hora de treinar, ele treina. Se a colega aparece bem na propaganda da empresa para a TV, ele reconhece o feito.
É muito óbvio que seja, assim, o bem-sucedido. É tão óbvio que me enternece. É tão importante, para mim, que me agrada pois, se meu filho, com o tempo, juntar essa e aquela ideia e entender o que é empatia, está excelente.
Disse-me uma entendida no assunto, que crianças acostumadas à ideia de empatia (porque lhes foi ensinada e porque viu seus pais porem-na em prática) escapam mais certamente à delinquência. Faz todo o sentido. É óbvio depois que se ouve o comentário. Uma vez tocadas pelo apelo de ver no outro uma possibilidade boa, respeitam-no, recebem-no, promovem empatia, formando laços.
Quem não se comove com o outro, quem não se arrepende pelo que fez de mau ao outro, e pelo que de bom deixou de fazer, tem mais problemas para se relacionar. Numa cena do filme, Sully revê-se numa gravação de vídeo, com a cara terrivelmente feroz, em ação a assustar alguém, e vê igualmente a carinha de pânico da menina, que naquele instante olhava para ele. Ele compreende que era tudo, menos aquilo, que cumpria fazer, uma vez que estava disposto a zelar por ela e já tinha inclusive sido banido para muito longe dela. Eles ultrapassam essa chatice e ele a devolve à casa, ok. Em seguida ele cria o seu próprio modelo de fábrica mas, reservada para o final do filme fica mesmo a melhor cara que um grandalhão pode fazer ao ouvir a voz de uma criança, e que só uma criança pode fazer nascer. Essa dádiva, felizmente, cabe aos que aprendem como cuidar do outro e, ainda, joga uma luz sobre os mais perdidinhos, aqueles que não cuidam e não compreendem a dor. Vai ver é por isso que precisam de fábricas mal concebidas, tramóias, comparsas e afins. Não há luz que chegue para quem não tem pares neste mundo. A luz aparece, dá sinais de vida, mas ela vai piscando, como se fosse um farol, até que ele deixa de reconhecê-la, porque ele nunca esteve lá.


quinta-feira, 23 de maio de 2013

Mudar sem ser o romântico de plantão


Em tudo existe um limite. A vida é cíclica e nada aumenta ou diminui eternamente. O movimento parece ser outro.
Se os desejos, por exemplo, não conhecem limites, eles se impõem um dia, obrigando homens e mulheres a viver em função da satisfação desses desejos. Assim, começam a perder pontos em áreas da vida que até então eram mais ou menos leves, mais ou menos equilibradas.
Mal comparando, é como se o desejo de comer doces virasse compulsão e o peso ganho com a ingestão exagerada transformasse qualquer caminhada num suplício, qualquer esforço físico, num drama, até ser impossível encarar uma ladeira, até ser impossível refrear a gula.
Essa condição está projetada na tela/ecrã do cinema de Portugal desde há uma semana. Leonardo DiCaprio expressa, na pele de Jay Gatsby, o quanto o desejo de retorno ao passado pode ser espinhoso.
Fui vê-lo por causa do livro de Scott Fitzgerald e também por causa da curiosidade quanto a esta adaptação para o cinema.
O que a personagem queria resgatar do passado? Uma paixão.
Nada de muito novo, pois não? A agudeza do escritor norte-americano realmente não estava nesse ponto.
Gatsby queria de volta uma mulher, ela o queria e queria também a redoma protetora em que o marido a mantinha, o marido dela queria ao mesmo tempo duas mulheres jovens e bonitas, uma delas queria infinitamente mais o amante do que o próprio marido, enfim, numa só trama de ficção, várias personagens moviam-se precariamente na vida, em função das paixões.
A carência afetiva, vista desse ângulo, não surpreende, ela abunda! Já ouvi um psicólogo referir certa vez a existência de estudos recentes a apontarem para cerca de 80% de casais amparados na mentira, para sustentar relações extraconjugais e casamentos arrastados. Agarrar-se às tábuas de salvação com unhas e dentes seria o prato nosso de cada dia… seria uma forma de conhecer o fim com dor.
Mas lá, na efervescência nova-iorquina dos anos 20 do século passado, o indomável não era o adultério, não era a carência, era antes a obsessão em supri-la, em queimar tudo para supri-la. Scott Fitzgerald foi ele mesmo um sujeito com pouco equilíbrio; isto somado ao talento para a literatura pode ter resultado no reconhecimento de que certos exageros, certas metas auto-impostas dão em ruína. Na trama de O Grande Gatsby, o escritor pôs um protagonista que tinha como objeto de desejo um sonho mais antigo, um vazio mais aterrador, cuja recusa incluía, de mistura, uma mulher muito querida.
Gatsby, para quem nunca leu o romance, é um daqueles homens que inventou uma origem de ouro, contrariou a pobreza real, perseguiu sem limites um pedestal no qual a vida amorosa era a cereja no topo do bolo.
Tudo o que Gatsby desejou, desde criança, era ser especial, era alcançar o céu dos outros para desfrutar a vida. Durante a caminhada em direção à conquista, conheceu Daisy e ela passou a simbolizar a chegada ao topo, porque valeria a pena perseguir esse sonho, se parecesse uma conquista para os dois.
Soa tão romântico, soa tão promissora a empreitada dele. Enquanto estamos a admirar nele esse dom de esperança, outra ordem se instala, no entanto. O olho de Deus em que Fitzgerald pôs uma armação de óculos capta o feitiço de um, a admiração de outro e a máquina continuar a andar, promovendo mudanças.
Para Nick Carraway, o narrador representado no cinema por Tobey Maguire, o fascínio que Gatsby exercia era o do otimismo, da dignidade. Gatsby, sujeito mal nascido e bem sucedido, era inquestionavelmente um homem de esperanças, de abertura para o mundo, de uma curiosa integridade. Era mil vezes mais admirável do que Daisy, do que o marido de Daisy, do que vários outros representantes das classes altas que violentam todo e qualquer sonho para nunca descer do pedestal. Como já vieram ao mundo conhecendo esse lugar de sonho, como sempre estiveram lá - muito embora não gozem desse privilégio com sabedoria de viver -, não estão dispostos a abrir mão dele.
Depois de ganhar dinheiro, de gastar dinheiro, de sair nos jornais, de aparentar boas maneiras e de se fazer temer em razão de boatos cuidadosamente difundidos, Gatsby ainda sonhava com a repetição de um caso de amor. Queria tudo, queria desde sempre, queria sem perguntar se alguém é verdadeiramente capaz de subir tanto e permanecer no alto.
Com a mira apontada para esse ideal de felicidade, Gatsby subiu e não vacilou até ao fim, convencido de que podia confiar no seu tino para o sucesso.
Gatsby abria espaço para subir, Daisy e os outros estavam sentados lá em cima e viviam estagnados, com o desejo de nunca descer.
Mas vida é definitivamente feita de movimento. Até um sonho de criança pode fazer uma pessoa caminhar, contente, para uma armadilha.
Quando uma obsessão está no controle, somos cego, perdidos por mais que o alvo pareça próximo.
O romance considerado obra-prima do escritor é pulsante, tem observações pungentes e, dentro delas, uma regra simples, que por milhares de razões pessoais parece difícil de obedecer – e não vai neste comentário crítica alguma: a vida tem limites, o êxito pessoal pode ser uma cilada, o quê para triunfar e para seduzir pode levar ao mais alto grau de decepção e de degradação. Gatsby aprendeu muito, farejou o caminho até o êxito porém, em certo ponto desse caminho, foi engolido pelo mistério, tragado por uma regra maior, por um limite.
Num último movimento, foi a arte de contar histórias, neste caso a história dessa enorme viagem da personagem Jay Gatsby, que permitiu a redenção e o recomeço da vida do narrador. Assolapado por ter assistido à ilusão do amigo, conseguiu se recuperar porque encarou a tarefa de dizer o que de puro e de potente há nas nossas raízes, o que por um excesso de imaginação estragamos, comprometemos e não chegamos a controlar.
O frisson do livro pareceu-me estar no filme. Nos diálogos, sem dúvida. Na música está, penso eu. Na dança das festas, idem. Nas paixões românticas, tolas e destrutivas, também. Por ser uma versão em 3D, até parece que sopra um vento de mudança a toda hora, na atmosfera de Gatsby, de Carraway, dos Buchanan, dos Wilson. Só faltou um ar quente e depois um ar gelado, para ser possível sentir na pele o que os excessos roubam da vida. Porque vida não é isso, acho eu...