O compositor brasileiro Cartola, cerca de trinta anos atrás, pôs as coisas nesses termos:
"Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos.
Vai reduzir as ilusões a pó"
Cazuza, autor do comentário "Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve", gravou essa música e hoje a versão dele é mais fácil de encontrar do que a versão original.
Um já tinha dito, o outro fez-lhe eco.
A mim, o tipo de aviso que a música carrega costumava assustar.
Quanto mais caminho por aí, no entanto, menos esse tipo de susto cresce dentro de mim.
Às vezes ele ainda faz uma espécie de bolo na zona da barriga, se eu cogito muito; mas o bolo se desfaz, sem tempo de ganhar outra consistência. Ao contrário, ele se dissipa, é tragado pela minha necessidade de digestão.
Um moinho não é, afinal, sinônimo de atropelo, de bola de neve, de cruz.
Moinho é movimento, é mudança.
Cartola pode ter pensado que sim, que a vida é uma sucessão de sofrimentos, pois outras estrofes de "O mundo é um moinho" corroboram a ideia de decadência e de impotência, mesmo quando se escolhe:
"Ainda é cedo amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora da partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
em cada esquina cai um pouco tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és..."
Mas que postura aconselhar, então, diante da pequena margem de que cada um dispõe para fazer escolhas, ao longo da vida?
Entre o ir e o ficar, ceder ou exercer pressão, testemunhar ou fechar os olhos, onde está a garantia de êxito?
Garantia de perenidade, impossível! Não há.
O tempo há-de correr, o corpo muda, os desejos ganham contornos diferentes, as metas se curvam às necessidades, tantas vezes.
A gente constata as quedas, a gente lambe as feridas, como se costuma dizer, a gente cuida e, como resultado, conhece-se melhor, quer com mais profundidade não magoar nem ser magoado, se estiver bem sintonizado.
Da música e do recado que ela me transmite ficam apenas uma apreciação meio vaga, meio temerosa.
A gente se desafia, a gente se consola, a gente sonha com mais vagar, porque tem que ser!