Tenho assistido ao filme
“Monstros S.A.” / “Monstros e Companhia” com meu filho.
Nunca o tinha feito antes de
comprar o DVD para ele. Nem sabia que o filme tem mais de dez anos. Bom, eu
ainda não era mãe na altura do lançamento e também já não era criança, adolescente ou
livre para ver o que bem entendesse, à hora que quisesse.
Vimos juntos pela primeira vez há
dias, e então pensei em uma série de detalhes que estão lá harmonizados.
Uma criança em frente à televisão
ou ao computador, sem a nossa companhia, está bem se o programa a que ela
assiste diverte e ensina, com um encanto próprio.
A música da abertura do filme é suave, o ritmo do jazz instrumental encontra paralelo no surgimento das imagens e na
ação dos monstros que recolhem, que comem, letra por letra, a
palavra que dá título ao filme. Eles abocanham, depois eles batem com a cauda e
a letra salta etc, e meu filho acompanha os movimentos, muito atento.
E todas aquelas portas em tons de azul, ainda na abertura!? Tornam a aparecer no decorrer da ação e com muito mais força, em
velocidade e em quantidade. Aparecem durante todo o filme, porque é da entrada
de monstros pelas portas dos roupeiros, nos quartos das crianças, que estamos a
falar nesse enredo. Mas as cenas em que elas voam, presas por cabos - e a
sucessão delas parece interminável - é uma delícia. Lembrei dos teleféricos, do
chapéu mexicano que faz nossas pernas balançarem no ar, mas no fundo é muito
melhor.
Os corpos dos monstros também
interessam. Fico a pensar no que parecerão a uma criança. Eu me pus a
quantificar: este é verde, aquele é colorido, naquele predomina um bege
mais apagado e por aí afora. Contei os que têm chifres e os que têm pontas
arredondadas para todos os lados ou até membros molengos com os quais eles se
equilibram; os que são muito altos e os que se arrastam pouco acima
do chão; os que têm pelos e mais pelos e os que têm olhos e mais olhos. A Celia
tem serpentes e guizo de cascavel no cabelo, a Rose mal tem lábios para marcar
com o batom e até as pálpebras são pesadas – dela meu filho se esquiva no sofá da nossa sala. E não
sou eu, não é você, não precisamos julgar, comparar conosco, dizer que fazem
apologia dessa ou daquela aparência. São todos para rir e com um ou outro
pormenor físico dá para simpatizar, seja pelo ar doce, seja pela alegria que
emana (Mike Wazowski, por exemplo, nem se importa com a reduzida visibilidade
do seu corpinho redondo e verde nos anúncios da empresa, ele vibra sempre e o
espectador ri. Na versão portuguesa quem fez as falas dele foi João Baião e penso que o resultado está mesmo muito engraçado).
A ideia de que as crianças são
nocivas e ao mesmo tempo úteis é uma proposta de mudança de perspectiva
curiosa. Nosso mundo sem monstros e sem fábricas para extrair gritos infantis também
passa pela noção de utilidade. Muito por causa dela é que as crianças não são
respeitadas. Elas não produzem, assim como os idosos e os artistas. Há um livro
de 1968, reeditado pelo menos mais cinco vezes, que mostra esses valores num
texto claro e agradável de ler, por isso adequado ao estudante que não chegou
ao ensino superior. O título é O Mundo
Precisa de Filosofia, e o autor, Eduardo Prado de Mendonça. De acordo com Mendonça,
quem gera dinheiro, quem pode ser associado à utilidade e ao progresso, tem prestígio. Quem
alimenta o mundo dos afetos, por exemplo, é inútil. Tem seu valor, pois a
inutilidade tem valor, mas pode ser mal cuidado pelos que só se
rendem ao dinheiro, à utilidade e ao progresso.
No filme, o diretor da fábrica fala nas crianças cada vez mais difíceis de assustar para obter gritos e todos têm paúra de ser tocados por uma criança. As crianças são úteis, e mesmo assim são mal cuidadas.
No filme, o diretor da fábrica fala nas crianças cada vez mais difíceis de assustar para obter gritos e todos têm paúra de ser tocados por uma criança. As crianças são úteis, e mesmo assim são mal cuidadas.
Até que um génio na arte de
assustar, um craque do susto é confrontado com uma menina e, fazendo na
realidade apenas o que estava habituado, que é entregar-se às tarefas por
inteiro, descobre o quanto uma menina oferece, de graça, e o quanto se arrepia,
quando é amedrontada.
Sully, o mais eficiente assustador,
dá-se bem com a menina porque é eficiente em tudo. Está onde é suposto estar,
sem ressalvas. Se é necessário invadir o quarto das crianças, mesmo durante uma
festa de pijamas, ele o faz. Se é hora de treinar, ele treina. Se a colega
aparece bem na propaganda da empresa para a TV, ele reconhece o feito.
É muito óbvio que seja, assim, o
bem-sucedido. É tão óbvio que me enternece. É tão importante, para mim, que me
agrada pois, se meu filho, com o tempo, juntar essa e
aquela ideia e entender o que é empatia, está excelente.
Disse-me uma entendida no
assunto, que crianças acostumadas à ideia de empatia (porque lhes foi ensinada
e porque viu seus pais porem-na em prática) escapam mais certamente à delinquência. Faz
todo o sentido. É óbvio depois que se ouve o comentário. Uma vez tocadas pelo
apelo de ver no outro uma possibilidade boa, respeitam-no, recebem-no,
promovem empatia, formando laços.
Quem não se comove com o outro, quem não
se arrepende pelo que fez de mau ao outro, e pelo que de bom deixou de fazer,
tem mais problemas para se relacionar. Numa cena do filme, Sully revê-se numa
gravação de vídeo, com a cara terrivelmente feroz, em ação a assustar alguém, e
vê igualmente a carinha de pânico da menina, que naquele instante olhava para
ele. Ele compreende que era tudo, menos aquilo, que cumpria fazer, uma vez que
estava disposto a zelar por ela e já tinha inclusive sido banido para muito longe
dela. Eles ultrapassam essa chatice e ele a devolve à casa, ok. Em seguida ele
cria o seu próprio modelo de fábrica mas, reservada para o final do filme fica
mesmo a melhor cara que um grandalhão pode fazer ao ouvir a voz de uma criança,
e que só uma criança pode fazer nascer. Essa dádiva, felizmente, cabe aos que
aprendem como cuidar do outro e, ainda, joga uma luz sobre os mais perdidinhos,
aqueles que não cuidam e não compreendem a dor. Vai ver é por isso que precisam
de fábricas mal concebidas, tramóias, comparsas e afins. Não há luz que chegue
para quem não tem pares neste mundo. A luz aparece, dá sinais de vida, mas ela
vai piscando, como se fosse um farol, até que ele deixa de reconhecê-la, porque
ele nunca esteve lá.