A
que hecatombe sobrevivi?
Dentro
de um cómodo que faz lembrar um grande cubo revestido de azulejos, faço-me essa
pergunta.
Os
tons de verde que vão da água-marinha ao piche parecem-me muito impessoais, o
pé-direito é altíssimo e, no entanto, eu não saí de mim ao entrar aqui, eu não
me sinto intimidada. Tento estar, apenas.
Às
minhas costas, a porta de madeira deslizou com todo o seu peso, mas não fez
barulho. Estou presa, obrigada a contemplar. Afinal, o espaço é só um átrio,
não um palco para uma surpresa qualquer. O que temer?
Pois.
Entretanto,
a pergunta inicial muda pois eu treino e insisto, mas não sei o que é estar
apenas, acabo por ser a menina de sempre, a menina que fantasia para poder estar. Pergunto-me, então, se estou
neste cenário para atender ao convite de um artista, para viver sob o efeito do
ambiente com que ele sonhou. Imagino-o a imaginar, a montar o cubo, plano após
plano, e a mandar-me o chamado, até me ver entrar.
São
obras dele os três bancos de madeira encostados à parede?
Estou
tão cansada que não cedo à tentação de sentar, que estou eu a magicar, então?
Sigo
em frente e, quando chego ao banco - e ele está vazio -, permaneço em pé.
Olho
para a porta, de novo.
Nem
pull nem push, nenhuma aragem pela fresta. Nem uma minúscula linha de luz
vinda do exterior.
Há
sussurros e ao procurá-los noto um longo balcão. Uma das suas pontas está atrás
da linha da porta, protegida por uma coluna. Não enxergo a outra. Talvez esteja
atrás de mim, além do limite até onde eu avancei.
São
funcionários que sussurram por detrás desse balcão. Parecem trabalhar para que
eu me sinta inquieta, enquanto falam entre dentes.
É
melhor evitar o ruído. Deve haver muito mais gente corredor afora.
Este
corredor terminará?
Mais
uma vez esforço-me para estar alienada do clima que minha observação ruidosa
criou: começo a repassar item por item o que terei de dizer na próxima sala, a
sala que eu não consigo antecipar como é. É mesmo um espanto eu ter reprimido esse
discurso durante tanto tempo!
Finalmente,
repito em silêncio as orações que sei.
Quero
estar comigo na outra sala e se lá eu chegar a falar, farei-o só por mim, só em
meu nome, sem levantar bandeiras.
Eu
consigo.
Minha
hecatombe foi de ordem moral, é importante que eu diga.
O
que quero explicar é que eu não cruzei uma linha na rua, a partir da qual vi
tudo em ruínas. São os meus nervos que estão em pandarecos e não os edifícios,
a sinalética desta vila ou o calçamento de paralelos. Sinto calafrios a percorrerem
meus braços. Tenho visões em que sucumbo à fraqueza.
Minha
história se arrastou por mais ou menos oito anos.
Sinto
uma enorme culpa, mesmo sabendo que seria muito melhor escolher a hipótese do
convite ao “faz de conta que isto, hoje, …”. Eu dependeria do artista e não de
mim, dona de escolhas tão questionáveis.
Volto
a fixar o tríptico verde do cubo, o balcão, a coluna. Ao lado dela, numa parte
em que já não restam azulejos, veem-se rachaduras finas.
Mais
uma vez, neste dia, alguém fala para mim sem que eu ouça. Uma cabeça de perfil,
com o ouvido em evidência, projeta-se na minha direção. Parece dizer:
-
Escuta!
E
eu escuto.
-
Estão todos curiosos. Mas ninguém a seu favor. Não descaia, tudo se ouve, grava
e repercute como o seu oposto.
O
oposto. Será a regra deste jogo?
Qual
é o oposto da frase que se lê à entrada deste edifício, então, qual é?
Não
estou certa quanto ao que virá, mas houve um antes, uma entrada até este lugar.
Eu passei por uma frase, tenho a certeza.
Esforço-me
para virá-la do avesso e… nada.
Meu
latim enfraqueceu, a frase não faz sentido para mim.
Tenho
receio de que seja a epígrafe da minha história, de que seja uma profecia.
No
pilar em que se lê “Iustitia Fons Pacis”, vi também uma fonte banhada de sol,
murmurante, tão viva quanto uma criação artificial pode ser.
A
agitação da água não produziu em mim um efeito calmante quando passei. Bloqueei
tudo por onde passei até agora. Nenhum sinal de vida concreto.
Antes
de chegar à fonte, ao pilar, à inscrição e à sala com jeito de cubo, no
entanto, tive um sonho. Os artistas sonham e realizam, eu sonho.
Depois
de entrar no grande cubo, observar e insistir na minha história, algo na
atmosfera fez-me recuar à entrada deste prédio e, dela, recuar mais, até a
madrugada.
Voltei
a ocupar-me do sonho. O facto é que de manhã saíra do estado de sonolência para
o de vigília a pensar nesse sonho, tentei lembrar-me dele diante da fonte e da
inscrição profética.
Lembro-me
dele agora.
O
sonho me lançava, sem mais, a um detalhe da fachada de um edifício antigo e
cativante.
Ali
eu experimentava um prazer infantil com a visão de umas pedras escuras,
notáveis mesmo sob a pouca claridade daquela hora.
Ah,
sim, revelei que era noite, no meu sonho? Era. Minha efabulação parece preferir
o escuro e o silêncio.
As
pedras do edifício revestiam uma parede côncava. Eram grandes placas escuras e brilhantes,
e disfarçado, no centro da concavidade, estava um nicho.
Eu
não desviava o olhar até a imagem que o nicho protegia, para mim não havia santo
ou milagre mais presentes do que o meu.
Os
olhos passeavam sem compromisso, mais de uma vez eles riram para a centelha que
eu trazia ao colo, a minha natureza, meu milagre, meu feixe de luz.
Eu
não estava sozinha no sonho.
Ele
sorria também e roçávamos, na passagem estreita, as folhas das plantas enfileiradas
- e elas eram ainda mais lustrosas do que as pedras.
Num
piscar de olhos já tínhamos subido a um apartamento todo branco, de limpeza e
de reflexos, iluminado como meu filho, iluminado como eu podia ser.
E
assim, com a sensação de serenidade por termos cruzado a porta de casa e
reencontrado nossos aposentos e nossa simplicidade, o sonho se desvanecia.
Restavam
duas coisas: a certeza de que nós dois seríamos felizes e uma estranha luz a insistir
em iluminar cada um dos cenários em que eu nos vi.
Mas
e o que vem a ser isso de felicidade? Ela agora tem luz, por acaso? Se eu nunca
tive garantias nenhumas!
Quem
me dera uma máquina que pudesse concretizar sonhos, concretizar o maior dos
sonhos, a felicidade! Penso nisso, na existência dessa máquina, em algum lugar,
para eu consentir em dizer meu “sim” à vida sem timidez, pois eu quero ser
feliz.
Seria
necessário um alarme, como naquele jogo infantil da batata quente quente quente. No meu caso, o alarme viria de uma
máquina.
A
tentativa de recordar o sonho tinha acabado de me ajudar a descobrir um
mecanismo, em mim, que era capaz de emitir esse sinal.
A
felicidade como uma luz de presença, só que andante, um foco, melhor dizendo, um
arquivo em movimento, um recado de que a escuridão tem um caminho e tem suas
presenças, também. À escuridão não se chega sozinha.
Eu
que ao longo de oito anos perdera forças e vira um poço fundo, com uma máquina
muito bem calibrada, que eu nem desconfiava ter, seria capaz de mostrar uma réstia
do poder e do mistério de conhecer, finalmente, a minha missão.
Uma
máquina de corda, uma máquina que iluminava tudo o que estivesse à altura do meu
coração.
Ela
sinalizaria os meus acertos.
Mas
calma! Água nessa fervura. Para o lado com a máquina do coração e com a missão.
Eu
estivera a divagar sozinha, em pé diante de uma fonte e de uma frase latina,
por causa de um sonho, e estava a esvair-me do cubo do artista. Já são
embrulhos a mais!
Preciso
me inserir de novo nesta realidade de natureza morta, estar só e expectante, pois
quando a hora se impuser e a decifração completa do sonho for interrompida,
aqui, dentro do cubo, tudo o que pode ser chamado de inteligência vai ser
exigido de mim; preciso fazer luz ainda sem a máquina, pois sei que houve um agente,
fui interditada por um palhaço.
Na
madrugada, quando o sonho virou fumo, foi o rosto dele que eu vi.
Há
quanto tempo tinha surgido, esquisita, a ideia do palhaço, estando eu bem
acordada?
Um
ano? Meses?
Um
dia, o tão habilidoso e triste palhaço da minha história pôs maquilhagem a mais.
E traiu-se.
Dele
eu esperava uma revelação como as que acontecem aos vampiros: em frente ao
espelho, ele seria entregue pela falta de imagem refletida. Seria assustador,
eu correria, ele se afastaria também, receoso de que eu denunciasse a sua
condição.
Mas
foi tão diferente!
Eu
vi mais naquele dia, vi o que não estava explícito naquele rosto, vi a camada de
tinta que uma base queria encobrir.
A
clareza veio e reconheci o traço escuro e arqueado de cada sobrancelha, o
contorno esbranquiçado e grosso em torno de cada olho, o vermelho vivo das
maçãs do rosto, a ponta do nariz que dava um ar perverso, e o abatimento de
todo o conjunto. Era um palhaço cansado.
Tinha
sido um disfarce, o tempo todo?! Um palhaço disfarçado de companheiro?
Disfarçado
me levava pela mão à rua, disfarçado conduzia nosso carro, disfarçado fazia
amor comigo antes de chegar o sono, disfarçado fazia o imenso favor de tolerar
a minha insegura existência.
Virá
hoje a usar esse disfarce? Terá, ao contrário, aberto o guarda-fatos para escolher
outra pele, outro disfarce?
Possuirá
uma máquina como a minha? Será cuidadoso com ela, a dar-lhe corda para
funcionar? Terá um coração vermelho rubi, para legitimamente desejar que alguém
esteja à altura dele?
Tiro
da carteira uma presilha. Sem importância, rosa pálido e lânguidas flores roxas.
Comprimo-a de leve com uma das mãos e com a outra ajeito o cabelo à altura da
nuca. Prendo os fios, achando que com essa aparência me tornei parente próxima da
costureira de um conto já fora de moda, costureira que trabalha todo o dia e
nem por isso consegue comprar uma prenda à filha, a menina Tati. Que lembrança!
A precisar de fôlego e com uma heroína dessas à cabeça! E, mais ainda, um artista
sonhador a mover cordelinhos!
Estico-me,
dou uns passos para o lado, mas não encaro de frente o palhaço que, neste preciso
instante, entra na sala.
Respiro
fundo.
Se
desisti de sentar na plateia, sozinha, para o espetáculo que não tem artista, tem
um farsante…
Só
mais um pouco, querida, só mais um esforço, e a história termina com o fruto
que não vai ser repartido, que não será engolido nem cuspido de volta à terra.
Seu
fruto, carne da sua carne, a partir de hoje é livremente seu e aprenderá de ti a
ter concentração e a desviar-se de embustes. Aprenderá de cor.
Você
atendeu ao convite. No plano do artista estava escrito: “darás teu coração e
ele lhe será devolvido, com outra forma, por outras mãos, batendo forte e com
uma luz familiar”.
Mãe
tem poder. À sombra da árvore de que a mãe toma conta não descansam palhaços,
nem em seus galhos pousam predadores que consigam levar mais do que uma vaga
recordação do seu fruto.
Enquanto
uma mãe representa, vem como se fossem duas, em sonho e com os nervos à flor da
pele.
É
a missão que a unifica.
O
próximo acto precisa ser organizado por sonhadores atarefados e hábeis.