Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Boas histórias, muitas fontes ou a literatura


Do que precisamos, afinal?

De boas histórias que nos ajudem a viver. As únicas verdades úteis são as que nos ajudam a viver. Num relacionamento, o que você precisa é criar uma história na qual se sinta vivo com a outra pessoa.

Hoje, temos mais opções para criar essa história?

Não sei. A cultura liberal oferece mais escolhas do que havia antes. Mas o capitalismo cria a ilusão de que temos muitas escolhas, quando na verdade temos muito poucas.
A única escolha é ser feliz ou não. É isso que está sendo vendido como o único programa: quanto prazer você pode ter, quão feliz pode ser. Só que felicidade pode ser como uma droga, nunca satisfaz, você quer sempre mais. Há coisas muito mais importantes que a felicidade: justiça, generosidade, gentileza. 


O psicanalista britânico Adam Phillips, o homem que responde às duas perguntas que você pode ver aqui em cima, foi entrevistado por uma jornalista da Folha de S.Paulo, para falar sobre casais e fidelidade.

Li a entrevista do início ao fim por causa do tema, ok.

Mas, recortadas (como eu as coloquei no blog), as perguntas e as respostas me pareceram mais abrangentes desde o momento em que as li. 

As "boas histórias" que nos ajudam a viver vêm do casamento e não só. Vêm do trabalho, das amizades, da família, da vizinhança, da televisão, do cinema, da rua, da convivência com os animais, voltam até nós a partir de um passado que abandonamos etc. 

Como agarrá-las?

Acho que o não as poder agarrar tem que ver com o que Adam Phillips fala na última resposta... parecendo que há muitas portas e muitas janelas, não há porque será improvável sustentar a maior parte das boas histórias que se apresentam como tais.

Abra os olhos e veja boas histórias. Sinto o cheiro delas. Deixe o vento tocar o seu cabelo e os pelos do seu braço quando elas passarem por perto, sem mais. Ouça sem querer as boas histórias dos outros.

Depois, então? Então! Tudo o que é boa história terá que trazer até a sua vida muito muito prazer.

Não vale trazer ensinamento.

Não vale trazer experiência.

Não vale trazer conforto.

Porque vivemos como se nada disso enchesse barriga.

Não enche barriga, não enche o peito de ar, não enche a cabeça de sonhos, a não ser em casos raros.

Algumas pessoas devem pôr a cabeça no travesseiro para adormecer com bons presságios, apanhadas por boas histórias.

A grande maioria de nós, no entanto, parece que já considera qualquer pista uma chatice.

Na mesma página do Universo on line que trazia link para a entrevista que eu reproduzo num diminuto trecho, havia uma chamada para a seguinte descoberta: quando diz "obrigado" a uma pessoa, você cuida da sua saúde, pois agradecer, ser cordial, faz bem à saúde.

Começo a achar que eu tive mais naturalidade nesse campo, quer dizer, já fui muito doce, mas estou esquecendo. Digo "obrigado", "bom feriado", "esteja à vontade", mas nem sei se me ouço.

Daí a literatura, uma aliada antiga, uma segunda Betina, que traz de qualquer lugar realidades inteiras, ambiguidades que me fazem pensar, imagens que eu quero ver pela satisfação de imaginar.




Mais uma voz que soa a dinheiro, mas uma Sierva María de Todos los Angeles, mais um Gregor Samsa, mais um Holden Caulfield confuso e inteligente, mais uma dupla de antagonistas como a de "Pai contra mãe", mais uma menina com sapatinhos de rubi e seu cão, mais uma personagem de Virginia Woolf, mais um narrador imaginativo, mais uma paisagem que eu nunca tinha concebido, mais uma escritora do século XVII.

Aceito e tomo todas as doses. Já vou indo.

4 comentários:

  1. Concordo, integralmente! Boas histórias nos fazem sonhar, respirar, viver... Que o diga Sherazade! Isso me fez lembrar de um trecho do livro "Afrodite", de Isabel Allende, vou até transcrever:
    "Em meu livro 'Contos de Eva Luna' há um prólogo que evoca o poder da narração, algo que nunca poderia ter escrito se não o tivesse vivido. Peço desculpas pela arrogância de citar a mim mesma, mas acho que ilustra o que disse. Os amantes, Eva luna e Rolf Carlé, repousam depois de um abraço encabritado. Na memória fotográfica de Rolf, a cena é como um quadro antigo, no qual a amada está a seu lado sobre a cama, com as pernas dobradas, um xale de seda sobre um ombro e a pele ainda úmida pelo amor. Rolf descreve assim a pintura:
    O homem está com os olhos fechados, uma mão sobre o peito e outra sobre a coxa dela, em íntima cumplicidade. Para mim essa visão é recorrente e imutável, nada muda, é sempre o mesmo sorriso plácido do homem, a mesma languidez da mulher, as mesmas pregas dos lençóis e cantos sombrios do quarto, sempre a luz da lâmpada roçando os seios e os pômulos dela no mesmo ângulo e sempre o xale de seda e os cabelos escuros caindo com igual delicadeza. Cada vez que penso em ti, assim te vejo, assim nos vejo, presos para sempre nesta tela, invulneráveis à deterioração da má memória. Posso desfrutar longamente esta cena, até sentir que entro no espaço do quadro e não sou mais o que observa, mas o homem que jaz junto a essa mulher. Então se rompe a simétrica quietude da pintura e escuto nossas vozes muito próximas.
    - Conta-me uma história - digo.
    - De que tipo?
    - Conta-me uma história que não tenhas contado para ninguém."

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  2. Nós combinamos que você entraria com um comentário desse?! Eu li Eva Luna, há muitos anos (acho que foi perto da data de lançamento do livro, faz uns 20 anos, talvez). Porque tinha lido outros livros da Isabel Allende e havia gostado do estilo. Afrodite, esse que você transcreveu, nunca li. Mas é engraçado que me reconheço exatamente nesse pedido da personagem que o trecho cita... queria uma história contada pra mim. Já pedi, vamos ver se um dia ela chega, com mais ou menos imaginação, não importa... Amanhã, a propósito de coincidências, é dia de falar sobre a narradora de As mil e uma noites aos meus alunos! Vamos ver se eles também se encantam. Obrigada, Juli.

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  3. Puts! Realmente, muitas coincidências... Eu também me reconheço muito nesse pedido do Rolf Carlé à amante: "Me conta uma história que você nunca contou a mais ninguém".
    O Rubem Alves também fala sobre o contar histórias, a narração e o conversar em vários textos. Se eu encontrar, mando também.
    Espero que se encantem sim, afinal nada mais encantador...
    beijos,
    juli

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  4. Ah, me esqueci... Esse livro "Afrodite", da Isabel Allende, é muito bom. Delicioso! E excitante, afinal é erótico, é disso que trata... Faz anos que me deparei com ele, tive intenção de lê-lo, mas não rolou... Agora, graças a estímulos "ocultos" (não vou revelar minha intimidade assim em público, depois te conto...), comecei a ler, ou melhor dizer, a devorar...

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