Começou
com uma música, um robô e uma barata muito estimada que, afinal, podia muito
bem fazer parte daquele cenário de fim de mundo pardacento.
Wall.e,
o robô, tinha a barriga grande como um forno, correntes nos dois lados do
corpo, para se locomover à semelhança de um tanque de guerra, olhos que me impressionaram
pelo formato e pelo tamanho, e duas mãozinhas como que à espera de outras mãos.
Estava
sempre a trabalhar. Extrapolava a função para a qual fora criado, a de limpar o
mundo dos detritos acumulados por gente cada vez mais desprovida de senso de responsabilidade:
enquanto compactava o lixo, ele selecionava o que reluzisse e, então, deslocava esse lixo especial para um arquivo só dele.
Sentido
de missão, lá isso ele tinha. E trabalhava sem desligar o botão da curiosidade.
Era capaz de interromper a cansativa e inesgotável tarefa de limpar o mundo,
para ouvir e ver musicais, como “Hello, Dolly!”, pois tudo está conectado, tudo
tem um sentido caro. Wall.e estava
atento às luzes, também, e por isso recebeu Eva tão logo uma nave a deixou à
superfície.
Fôssemos
nós, alguns de nós pelo menos, chatos que desejam tudo menos atender bem, tudo
menos olhar de frente, tudo menos dar-se ao trabalho de compreender, e os
pequenos tesouros estariam para sempre enterrados e os outros, esses estariam
sós, irremediavelmente sós à procura de vida.
Bom, acontece que Eva não era como Wall.e. Fora
concebida com um desenho mais elegante, talvez, os olhos emitiam uma luz azul
(que apesar de fria, sabe-se lá por que, costuma ser entendida como uma
credencial para o universo que vale a pena, o dos ricos e famosos), cheirava a
higiene a brancura do material com que fora revestida. E não havia com ela hora
para a diversão. Eva chegara para rastrear qualquer vestígio de vida, mas saberia
o que vida quer dizer? Saberia dar com os presentes escondidos?
Eva
reconheceu uma plantinha sobrevivente, guardada por causa da boa vontade de Wall.e, mas não reconheceu nele o desejo
de mais vida. Ou só o reconheceu bem mais à frente. No princípio, nem aos
musicais a sua doçura estava aberta. Fora formatada para bem menos do que esses
encontros felizes…
A
respeito de formatações, vale lembrar que, no início do século XIX, passou a
existir, por obra da escritora inglesa Mary Shelley, um monstro que pedia uma
companheira em cujas características ele se reconhecesse, uma igual, enfim. A
incompreensão causava dor à criatura do Dr. Frankenstein. Há poucos anos, por
outro lado, a Pixar, da Walt Disney Company, criou esse robô Wall.e igualmente esperançoso
de um par romântico, mas que não tinha interlocutores aos quais se lamentar, a
fim de conquistar o direito a um par com perfil pré-definido e mais apropriado
do que outros perfis. Eva e ele não se pareciam, mas estava tudo bem. Wall.e queria passear, dar as mãos,
cantar e dançar. No mundo dele, bolas, a música de fundo podia ser “What a
wonderful world”, na voz de Louis Armstrong! A solidão e a consciência de que antes do fim do mundo existiam casais amorosos eram bons augúrios.
O
filme tem muito mais, claro, mas hoje, às vésperas de mudar de ano, pensei nas
nossas casas mal pensadas para o rigor do frio, do calor, das chuvas etc. Pensei
nas tantas coisas concretas e indispensáveis, mal feitas e mal remediadas, que
parecem interessar a pouca gente, a pouca gente desperta e disposta a arregaçar
as mangas. Hoje sou eu a sentir na pele o quanto o descaso aliena e torna o
espaço habitável pior do que pode ser. Não por acaso sinto-o na pele e não
posso deixar de lamentar; estaremos cansados demais para construir com mais
responsabilidade? Estaremos desatentos demais? Estaremos atrasados demais? E
será que daqui a algum tempo ficaremos roliços e lentos como os humanos que
tiveram de abdicar de um vasto espaço e depositar toda a confiança em Wall.e e Eva? Quem fará nossos robôs salvadores com um
bocadinho do seu próprio coração?!
Comodidade: Nosso amor, nossa sina, nossa ruína.
ResponderEliminarComo bem disse, a inquietação é de poucos.
Poucos, talvez notáveis, mas poucos.
Talvez estes poucos tenham o poder de iluminar outros poucos mas desconfio que a sedução da comodidade impeça a grande maioria de nós de abandonar o status quo, ainda que ele nos encaminhe ao caos.
A comodidade conserva, acho eu.
ResponderEliminarMas é conservação má, do tipo que cheira a mofo.
O outro extremo, o excesso de inquietação, também nos atrapalha, porque destrói.
Li há umas horas o prefácio de uma edição de O GRANDE GATSBY, um dos livros de que mais gosto, e fiquei tão incomodada com as explicações sobre a ruína do autor, Scott Fitzgerald.
Tenho tanto medo da ruína quanto do conservação que impede a aproximação das novidades.
Remédio?
O meio-termo.
Será que o ser humano do meio-termo é feliz, César?
Tenho uma simpatia pelo budismo e o caminho do meio é justamente a materialização desta ideia.
EliminarTendo a pensar que a erudição para o homem tal o casulo para a borboleta.
Ignorantes somos como lagartas. Consumimos. Apenas consumimos. Sem pesar implicações, sem medir consequências.
Ao caminhar pela erudição nos tornamos crisálidas. Figuras em trânsito. De certa forma isolados, alheios, desencaixados do que há ao nosso redor.
Penso que felicidade pode ser muita coisa, talvez o mais difícil seja justamente entender o que nos torna felizes. Verdadeiramente felizes.
Talvez neste ponto nos tornemos borboletas.
Talvez eclodamos (neologismo?) sem o devido preparo.
Talvez fiquemos eternamente buscando a matéria dessa nossa felicidade, talvez nos passe desapercebida a resposta.
É preciso muita sensibilidade para aceitar que aquilo que queremos pode não ser o que nos fará feliz, que podemos, muitas vezes, estar enganados ao nosso próprio respeito.
Gosto da sua pergunta. Como toda boa pergunta, responde-la apenas me traz novas questões e alguns palpites inconclusivos.
Boas imagens, essas 3 de uma cadeia de transformação, potencial transformação.
ResponderEliminarEstar enganado a respeito do que somos, afinal, deve acontecer montes de vezes! E se pensamos e vemos como lagarta, ao passo que já somos borboleta, o que farão de nós?!
Creio que a pergunta mais apropriada é "que faremos de nós". Tudo que sei é que de nada valem asas sem a consciência de que pode voar.
EliminarTalvez felicidade seja mais uma postura do que uma realização. Isso explicaria a subjetividade da matéria.
Um filme realmente doce, tanto quanto este texto com um belíssimo desenlace: "Quem fará nossos robôs salvadores com um bocadinho do seu próprio coração?!".
ResponderEliminarAinda bem que gostou. O filme inspira, não inspira!? Dá vontade de fazer a vontade ao Wall.e e dar as mãos e dançar!
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