Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Benditas palavras

Crianças entregam-se aos nossos cuidados de maneira inocente. Dão pinta da curiosidade que sentem ao nos verem pegar um termómetro, tirar da lata colorida do chá do bebê uma ou duas colheres para misturar à água fumegante, abrir a gaveta das meias, seja lá o que for que estejamos a providenciar, geralmente às pressas. Arrisco dizer que em proporção muito parecida, esquecem-se de nós e do nosso movimento, se na televisão aparece publicidade cuja música fica bem acompanhada com umas palminhas que aprenderam a bater… Permitem-se estar em sintonia com o meio e, para a sorte da mãe de criança pequena, até certa altura ela é o meio!

Já não trago de volta as palavras bonitas que passaram por mim numa manhã recente, quando peguei meu filho ao colo, segurando um lenço de papel muito fino em uma das mãos, e nos sentamos no sofá. Mesmo sem apoio para as minhas costas, talvez por instinto não o inclinei para o lugar vazio ao meu lado, mas para o resguardo do meu próprio corpo.

Ele se sentia e se sente irritado porque desde há dez dias mais ou menos tem sempre alguém que quer limpar-lhe o nariz. Por isso primeiro empurrou a mão em que eu tinha o lenço. Em seguida, mais calmo, esqueceu o gesto de recusa. E eu, calma também, limpei devagar, sem esfregar, sem apertar aquele nariz redondo.

Sentindo serenamente o contato, coloquei em cada pé do meu menino uma meia quentinha, daquelas que minutos atrás ele mesmo tinha jogado em cima das almofadas da sala. Ajeitei a peça de roupa que ele vestia por baixo da blusa de lã e, impulsionada pelo calor da barriga, dei um abraço longo e afundei meu rosto no pescoço dele.

O cabelo só agora começa a crescer de verdade. É fino. Vai ganhando mais ou menos a cor do meu cabelo. Passa de preto a castanho mais claro. Quando comecei a notar cachos desse cabelo a quererem se formar, ele criava o hábito de pôr a mão entre os meus fios de cabelo, como forma de adormecer. Ainda não sabe que uns são mais lisos e outros mais crespos, às vezes encontra um nó e puxa com toda a força para rompê-lo.

E eu que nunca tive queixa de insónia, me pego a acordar no meio da noite, se a respiração dele está ofegante, se resmunga, se chora, se vira muitas vezes de um lado para outro no berço ao lado da cama em que eu durmo. Perco o sono desse jeito, mas não perco de todo a paciência. Passa a noite, mas não passa o gosto em pô-lo algumas noites entre o pai e eu. Porque ele se mexe bruscamente, mas também sabe procurar com uma mão o meu rosto. E nele faz festinhas.

As palavras doces e bonitas que assomam de repente, que assomaram no dia do colo e do lenço ou em outras horas encantadas do 1º ano de vida do meu filho, somem. Voltam a surgir por causa do milagre de certos momentos. Ainda bem que vão durar a um ritmo natural.

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